Análise crítica do projeto do Novo Código Penal: partícipes
Por Iverson Kech Ferreira
Criticado por uns e defendido por outros o Projeto do Novo Código Penal (PL 236/2012) é de fato um dos temas mais relevantes para toda a sociedade, todavia, por trazer algumas fórmulas novas e conceitos não conhecidos até então pelo penalismo nacional, ao menos na prática, que devem ser interpretados com parcimônia.
Certamente necessitamos com urgência a revogação de alguns artigos que transparecem a redução de um codex datado de 1940, mitigando as transformações sociais de cunho regular e consuetudinário, ao mesmo que, muitas normas prevalecem ainda, desproporcionais.
A tratativa é a seguinte: a análise genérica das normas e principalmente conceitos que afirmam condutas cada vez mais rotuladas como criminosas, uma vez que esse era o essencial motivo de uma alteração a priori, em nosso Código de leis penais. Retirar os excessos, aparar arestas que não precisariam ser realçadas, reescrever nos tempos hodiernos um código que é temporal, pois as sociedades se transformam, os paradigmas mudam, as tecnologias se revezam no obsoleto.
O artigo 38, II, b, é uma trágica decorrência contrariando tudo aquilo que, como defensores de um Estado Democrático de Direitos e garantias fundamentais, contestamos. Diz o referido:
Art. 38. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º Concorrem para o crime: II – partícipes, assim considerados: b) aqueles que deviam e podiam agir para evitar o crime cometido por outrem, mas se omitem. (grifo nosso)
Um artigo desses serve somente para demonstrar como funciona a cabeça do legislador e dos apoiadores de tal desiderato. Aspirar a sociedade do castigo e ainda ampliar contundentemente as exegeses punitivas é o conceito de um estado de coisas que por si só demonstram a pretensão inquisitorial crescente quando o assunto é penalizar. Simplesmente o que ocorre é a maximização do poder de penalização do Estado contra quem quer que seja que esteja assistindo uma cena de homicídio, ou ainda, que labore em algum setor de compliance de alguma empresa.
Entende-se pelo conceito trazido que partícipes são considerados aqueles que deviam e podiam agir para evitar o crime cometido por outrem, mas se omitem.
São comuns casos onde a acusação é extremamente valorada por um sentido de criminalização legitimada pelos moldes do conflito entre os anseios por mais segurança de uma sociedade que cada vez mais enxerga o Estado e suas obrigações (tais quais segurança, educação e saúde) inerte e afastado, e, por uma síntese de valores que se constituem no acusador ao redigir sua peça acusatória, numa supervaloração dos atos descritos. Nesse interim, o Ministério Público faz ressurgir o Estado com toda sua única força que realmente este parece ter, para reafirmar a sua presença naquilo que consegue fazer: a penalização e a sanção.
Essa pequena letra b tem uma influência enorme. Qual o motivo em explicar a um júri que seu cliente, por medo, omitiu-se de impedir um assassinato, mesmo que o matador no caso em questão tenha se valido apenas de uma pedra, que não arma de fogo. Pra que? Explicar aos jurados que seu cliente estava próximo do fato, mas não agiu por receio, pavor da vingança, medo ou até mesmo por que não, resignação ao ato. Isto é intrínseco na vida humana! Primeiro a defesa pessoal nesses casos. A prova testemunhal aqui ganha uma força tão grande que suas causas podem trazer o infortúnio do acusado, mesmo este não estando tão próximo assim da vitima: “Mas ele era tio da vítima e estava a dez metros do assassinato!”
Dever agir é caso de polícia, que possui em seu cerne e existência a proteção da vida e da lei, na manutenção de uma ordem prevista na civilidade e urbanidade. Todavia, o homem comum, que muitas vezes já presenciou tantos assassinatos em seu bairro ou comunidade, que carece da falta do real Estado em sua vida, muitas dessas vezes até bem de perto, por ser amigo dos dois envolvidos, pode envolver-se também no ato, por não ter agido para evitar o crime.
Assim, não há necessidade de um esforço danado para a punição do homicídio daquele que estava prostrado ao lado do assassino e mesmo pela falta de coragem não teve iniciativa para evitar o fato que trouxe o resultado morte. A omissão de socorro que poderia trazer alguma responsabilidade ao observador é vedada, podendo então este infeliz responder pela mesma agressão perpetrada pelo assassino.
Mais casos para o “grande júri” resolver, onde alguns nele veem magia, o que na verdade há é uma maneira clara e usual de condenação de alguém, julgado por sete cidadãos, que observam a dualidade Juiz/Promotor lado a lado, que notam o réu isolado num canto distinto e longínquo da sala. Se não fosse inquisidor, pelo menos seriam oito jurados, para que no fim se possa valer a dúvida razoável numa votação acirrada: quatro a quatro e não sempre quatro a três. É ou não inquisição? Serve ou não mais a um propósito com maior veemência do que ao outro? O propósito é a condenação. Aqui se perde de todo o direito aquela magia que alguns ainda conseguem encontrar.
Um prato cheio para o sistema inquisitivo de plantão.
Não fosse somente isso, há a criminalidade econômica. O labor em um setor de compliance de uma empresa qualquer será uma atividade de extrema ameaça á liberdade. Se a função é evitar irregularidades, aquele funcionário que não detectou tal crime, por imperícia ou desleixo, imprudência ou inexperiência, poderá ser responsabilizado pela conduta criminosa de quem se aproveitou financeiramente do fato. Como se a legislação que trata da lavagem de dinheiro e crimes econômicos já não tivesse alguns problemas para resolver, aprovar tal participação por uma omissão irá criar uma modalidade de crimes e condutas sem precedentes.
A modificação do foco principal do agente causador do ato criminoso para o individuo que se omite, ou em entendimento geral quando da leitura do artigo em questão, para aquele que deixa que o ato seja mesmo praticado, é temerário por ainda não entendermos até onde poderá ir ou alcançar qualquer acusação sobre fatos similares.
Já não basta que o sistema criminal seja mesmo seletivo e acione algumas classes mais que outras, não basta os interesses envolvidos em assuntos de lavagem de dinheiro. Existirá também, se aprovado for o projeto, neste sentido, quem criminalizar a mais.
Nota-se que a criminalização destas condutas é desproporcional na medida em que são atos que se espera das pessoas comuns em momentos de crise e em situações desesperadoras. A omissão não deve ser tratada levianamente quando o que se procura é salvar a própria vida.
As maneiras de proteção/acuação do indivíduo partem de um para o outro, perfazendo-se subjetivamente no momento em que ocorre o fato, não há como precisar ou até mesmo exigir uma conduta adversa na maioria das pessoas, porque todos são diferentes; a ação nem sempre corresponde ao que se é esperado, grosso modo, é na realidade que podemos observar as condutas.
Criminalizar a falta de omissão para evitar um crime é frase de legislador que nunca esteve de frente com traficantes, milicianos, justiceiros, participes de organizações criminosas como o PCC e suas ameaças contra a vida, ou que nunca se preocupou/incomodou com essas hipóteses.
Há aqui mais um excesso desproporcional do Direito Penal e a penalização de condutas, ao invés de moderação e inovação, há a involução.
De fato, um prato cheio para os inquisidores de plantão.