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Violência doméstica: os animais também são vítimas

Violência doméstica: os animais também são vítimas

No mês de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Muitas mulheres, porém, não têm o que comemorar. São vítimas da violência doméstica, juntamente com seus filhos, animais de estimação e idosos.

Até as décadas de 1960 e 1970 os cientistas sociais prestaram pouca atenção a formas de violência em que animais podiam ser maltratados, mulheres podiam ser espancadas por seus maridos ou amigos e crianças podiam ser vítimas de abusos e negligência.

Não relacionavam abuso de animais, violência doméstica e maus-tratos infantis, que eram tratadas como formas distintas de violência. Atualmente, porém, em vez de serem vistas como formas de violência não relacionadas, a ciência social está finalmente lidando com as possíveis ligações entre elas.

Ascione atribui a demora na percepção de que estas violências estão intimamente conectadas principalmente pela dificuldade na definição e registro de maus-tratos, além da falta de interesse dos pesquisadores em concentrar seus estudos em como os animais são tratados – ou maltratados – em nossa sociedade (ASCIONE, 2005, p. 26).

Os animais também são vítimas

A violência doméstica não ocorre isoladamente de outras formas de abuso, e há um crescente reconhecimento de que a violência doméstica, o abuso infantil e de animais ocorrem frequentemente nos mesmos lares (KOGAN et al., 2004, p. 418).

O certo é que o abuso de animais e a violência interpessoal em relação aos seres humanos compartilham características comuns: ambos os tipos de vítimas são seres vivos, têm capacidade de sentir dor e angústia, podem exibir sinais físicos de dor e sofrimento e podem morrer, como resultado de ferimentos infligidos (ASCIONE, 2001, p. 3).

“Nas últimas décadas, surgiu a concepção da família multiespécie, que consiste em um grupo familiar composto por pessoas que reconhecem e legitimam seus animais de estimação como membros da família”. Uma associação entre maus tratos contra os animais e a violência doméstica foi encontrada e nomeada internacionalmente como Link, que significa “elo” (GARCIA; BARRERO, [s.d.]).

A violência doméstica contra a mulher é definida na legislação brasileira, no art. 5º, III da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, também chamada “Lei Maria da Penha”, como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, […] em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação” (BRASIL, 2006).

Infelizmente, estudos demonstram que ainda é um problema que afeta milhões de mulheres no mundo todo. Segundo a Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 30% das mulheres do mundo entre 15 e 69 anos de idade são abusadas por seu companheiro. Na América Latina 25% a 50% das mulheres sofrem violência doméstica. Segundo dados de 2013, da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Brasil, 38.020 mulheres são agredidas diariamente, sendo que em 68,8% das ocorrências os agressores são os cônjuges, companheiros ou ex-maridos (GARCIA; BARRERO, [s.d.]).

No Brasil, estima-se uma coocorrência de violência doméstica por parceiro íntimo contra mulheres e maus-tratos contra os animais da família entre 71% e 83%, segundo dados obtidos em abrigos para mulheres agredidas em onze cidades do estado de São Paulo (CÂMARA MUNICIPAL DE CURITIBA, 2018). Além disso, 71,8% dos incidentes acontecem na própria residência da vítima, permitindo entender que é no âmbito doméstico onde se gera a maior parte das situações de violência vividas pelas mulheres (WAISELFISZ, 2012, p. 18).

É difícil, porém, determinar o número de crianças diretamente vitimizadas ou expostas à violência doméstica, mas calcula-se que, nos Estados Unidos, entre 10% a 20% das crianças encontram-se nessa situação (GARCIA; BARRERO, [s.d.]).

Maus-tratos com animais costumam ser “a ponta do iceberg” e o primeiro sinal de alerta de um indivíduo ou família em apuros. Em casos de violência doméstica, abuso infantil e abuso de idosos, o abuso de animais pode ser uma forma de o agressor silenciar as vítimas ou impedi-las de deixar um relacionamento violento.

Os abusadores matam, ferem ou ameaçam animais para exercer poder sobre as vítimas humanas e mostrar-lhes o que poderia acontecer com elas. Matar um animal de estimação da família pode eliminar uma fonte de conforto e apoio para a vítima humana. Às vezes, as próprias vítimas abusam dos animais, seja para proteger o animal de danos ainda maiores ou para deslocar sua hostilidade contra o agressor (NATIONAL LINK COALITION, [s.d.]).

A violência contra seres humanos ou animais pode assumir a forma de abuso ou negligência física, sexual ou emocional. A maneira como os animais são vistos em uma família é uma janela para as relações interpessoais e a dinâmica familiar. Investigadores que encontram crueldade, abuso ou negligência com animais raramente se surpreendem ao ver outras questões ocultas sob a superfície, como a violência doméstica, o maltrato infantil e o abuso dos idosos (NATIONAL LINK COALITION, [s.d.]).

Flynn (1999, p. 972) complementa, afirmando que o abuso de animais tende a ser conduzido majoritariamente por homens. Para Garcia e Barrero [s.d.], “embora os homens também possam ser vítimas de violência doméstica, as mulheres são por muito as maiores vítimas deste tipo de violência interpessoal”. E, segundo Flynn (2001, p. 75-76), tal como acontece com outras formas de violência familiar, o tratamento abusivo de animais ocorre em todos os níveis socioeconômicos.

Relativamente pouca atenção é dada a um aspecto do problema: o abuso intencional de animais como um método de violência doméstica. Frequentemente, os abusadores exploram o vínculo emocional próximo, compartilhado por uma vítima e seu companheiro animal, para causar danos à vítima humana.

O abusador pode prejudicar ou matar o animal para causar danos emocionais à mulher, usar ameaças contra o animal para obter obediência ou controle sobre ela, ou usar esses métodos para abusá-la ou coagir seu retorno depois que ela deixar a casa.

As vítimas sofrem de angústia e desespero ao testemunhar seu parceiro torturar seu amado animal diante de seus olhos e, frequentemente, falam de como sua preocupação com o animal impede sua saída da casa. Como as instituições que abrigam mulheres vítimas de violência doméstica normalmente não aceitam animais, uma vítima que parte deve deixar seu animal no domicílio.

Ao fazer isso, ela fica vulnerável a danos através do abuso contínuo do animal – abuso que pode forçá-la a retornar ao agressor apenas para proteger o animal (UPADHYA, 2014, p. 1163). O abuso de animais, portanto, é uma forma de poder e controle usada para manipular, intimidar e retaliar outras pessoas na violência doméstica  (NATIONAL LINK COALITION, [s.d.]).

Adams assegura, ainda, que existe uma ameaça ou morte real de um animal, geralmente um animal de estimação, como forma de estabelecer ou manter o controle sobre mulheres e crianças que estão sendo sexualmente vitimizadas. E há um uso de animais em violação sexual de mulheres ou crianças, ou o uso de animais para obter algum tipo de gratificação sexual (ADAMS, 1994, p. 65). A vitimização sexual de mulheres, crianças e animais, porém, ocorre de forma a ser invisível para a maioria das pessoas (ADAMS, 1994, p. 72).

Flynn (2008, p. 161) levanta uma questão interessante: quando os animais de companhia testemunham a mulher sendo agredida fisicamente, eles podem desempenhar dois papéis. O primeiro é o de confortar, apoiando emocionalmente a vítima após o episódio violento. O segundo é o de proteger, às vezes arriscando sua própria integridade física.

De qualquer maneira, testemunhar o abuso de uma vítima é sempre muito perturbador para o animal de estimação. Similarmente aos sintomas de estresse em humanos, as mulheres reportaram muitas manifestações físicas de estresse em seus pets quando estes testemunharam o abuso sofrido por elas, incluindo tremores, encolhimento e micção, entre outros. É importante observar, portanto, que tanto a violência sofrida pela mulher agride o animal, como a violência sofrida pelo animal agride a mulher.

Quando as crianças abusam de animais, eles podem estar imitando a violência que eles experimentaram em casa – seja entre os pais ou a violência que os pais lhes infligiram. Crianças em lares onde ocorreram abusos contra a mulher ou abuso infantil podem ter testemunhado também abuso animal. Homens violentos podem ter ameaçado ou ferido os animais de companhia de sua parceira e/ou filhos, criando um clima de terror para vítimas humanas e animais (FLYNN, 2001, p. 81).

O impacto emocional sobre as crianças ​​que testemunham ou perpetram atos de crueldade contra os animais pode ser vitalício e devastador. O abuso de animais faz parte de um ciclo intergeracional de violência. Crianças que vivem em lares com violência doméstica e abuso de animais absorvem atitudes e normas familiares insalubres e transmitem esses valores aos seus próprios filhos quando eles crescem (NATIONAL LINK COALITION, [s.d.]) e, para Dadds (2008), em família violentas e abusivas, o animal de estimação normalmente serve como um objeto contra o qual a violência pode ser perpetrada.

Sabendo que violência familiar e abuso contra os animais estão ligados, é importante que exista uma ampla programação educacional e de conscientização pública sobre essa ligação. Apresentações comunitárias, eventos especiais, abordagens específicas sobre o tema em escolas, programas em universidades e treinamento para profissionais aumentarão a conscientização e poderão alavancar estratégias organizacionais eficazes.

O abuso de animais é agora reconhecido como parte da violência familiar com sérias implicações para as vítimas e para a sociedade. Reconhecer o vínculo entre o abuso de animais e a violência doméstica, os maus-tratos infantis e o abuso de idosos proporcionará aos profissionais uma ferramenta importante. Ao trabalhar em conjunto, a conscientização profissional e pública será levantada, o que, por sua vez, levará a comunidades mais seguras e saudáveis e a programas mais eficazes (NATIONAL LINK COALITION, [s.d.]).

Ascione e Shapiro (2009) asseguram que outra importante medida é o surgimento, nas últimas duas décadas, do campo de Direito Animal, que é um poderoso instrumento de inovação em relação à ligação entre violência doméstica e abuso animal. Evidências de seu crescimento são encontradas, também, em periódicos, conferências, cursos, livros de casos e advogados especializados em Direito Animal.

O campo de Direito Animal é em grande parte responsável por um número de desenvolvimentos judiciais, legislativos e regulamentares que fornecem uma política relevante para a ligação violência doméstica/abuso de animais. Além de suas funções punitivas e de dissuasão para perpetradores em risco e reais, as leis educam e moldam a atitude do público em geral em relação à importância do abuso de animais e sua relação com outras formas de violência.

Os animais também são vítimas

O reconhecimento de animais como sencientes poderá apoiar iniciativas tais como processar por lesão injusta e angústia mental, além do valor de mercado de um animal de companhia maltratado, bem como a reclassificação do abuso de animais de um crime contra a propriedade para um crime contra a sociedade. Mais uma vez, essa classificação permitiria que o abuso de animais fosse encarado mais seriamente no contexto da justiça criminal.

Quando animais são abusados, as pessoas correm risco; quando as pessoas são abusadas, os animais correm risco. O aumento da conscientização sobre o elo está incentivando os legisladores, as agências comunitárias e as pessoas interessadas a agir, dando maior importância à suspeita de abuso de animais, sabendo que eles também podem estar prevenindo outras formas de violência (NATIONAL LINK COALITION, [s.d.]).


REFERÊNCIAS

ADAMS, Carol J. Bringing peace home: a feminist philosophical perspective on the abuse of women, children, and pet animals. Hypatia, Hoboken, NJ, v. 9, n. 2 p. 63-84, 1994. Disponível aqui. Acesso em: 5 maio 2018.

______. Animal abuse and youth violence. Juvenile Justice Bulletin, Washington, DC, p. 1-16, set. 2001. Disponível aqui. Acesso em: 3 jan. 2018.

______. Old wine in a new bottle. In: ASCIONE, Frank R. Children and animals: exploring the roots of kindness and cruelty. Purdue University Press, West Lafayette, IN, 2005. p. 25-40.

ASCIONE, Frank. R.; SHAPIRO, Kenneth J. People and animals, kindness and cruelty: Research directions and policy implications. Journal of Social Issues, MedfordMA, v. 65, n. 3, p. 569-587, 2009. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2018.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 9 maio 2018.

CÂMARA MUNICIPAL DE CURITIBA. Maus-tratos a animais indicam violência 
doméstica, defendem especialistas. 2018.
Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2018.

DADDS, Mark R. Conduct problems and cruelty to animals in children: what is the link? In: ASCIONE, Frank R. (Ed.). The international handbook of animal abuse and cruelty: theory, research, and application. West Lafayette: Purdue University Press, 2008. p. 111-131.

FLYNN, Clifton P. Exploring the link between corporal punishment and children’s cruelty to animals. Journal of Marriage and Family, Malden, MA, v. 61, n. 4, p. 971-981, nov. 1999. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2018.

______. Acknowledging the “Zoological Connection”: A sociological analysis of animal cruelty. Society & Animals, Cambridge, v. 9, n.1, p. 71-87, 2001. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2018.

______. A sociological analysis of animal abuse. In: ASCIONE, Frank R. (Ed.). The international handbook of animal abuse and cruelty: theory, research, and application. West Lafayette: Purdue University Press, 2008. p. 155-174.

GARCIA, Rita de Cassia; BARRERO, Stefany. Violência doméstica e abuso animal. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 9 maio 2018.

KOGAN, Lori R. et al. Crosstrails: a unique foster program to provide safety for pets of women in safehouses. Violence Against Women, Thousand Oaks, CA, v. 10, n. 4, p. 418-434, abr. 2004. Disponível aqui. Acesso em: 25 abr. 2018.

NATIONAL LINK COALITION. How are animal abuse and family violence linked?  [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 26 abr. 2018.

UPADHYA, Vivek. The abuse of animals as a method of domestic violence: the need for criminalization. Emory Law Journal, Atlanta, GA, v. 63, p. 1163-1209, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2018.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência, 2012. Atualização: homicídios em mulheres no Brasil. [s. l.]: CEBELA/FLACSO, 2012.


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Gisele Kronhardt Scheffer

Mestre em Direito Animal. Especialista em Farmacologia. Médica Veterinária.

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