Um animal de estimação diferente na cadeia
Um animal de estimação diferente na cadeia
“Esse é o grande mérito da interdisciplinaridade. Propicia a visão integral do objeto de estudo, contrapondo-se a insuficiente e incompleta análise fragmentada do fenômeno. Não basta definir o crime e a pena correspondente. Isto é pouco. É preciso igualmente analisar o conteúdo da conduta que o direito classificou como criminosa e investigar a pessoa que a praticou, tarefas inegavelmente mais complexas. É necessário discutir as estratégias de intervenção social e as agruras do cárcere, normal destino da clientela do sistema." (MANAS, Carlos Vico. Prefácio. In: SÁ, Alvino Augusto. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal, p. 8)
Meus artigos se resumem, via de regra, a uma breve análise de experiências no cárcere, onde abordo um fato que ocorreu em uma unidade prisional. Servirão os artigos de estudos sobre a Criminologia Penitenciária. Pouco se estuda e quase nada se publica, devido às dificuldades de acesso ao cárcere.
Não conheço uma obra em nosso país sobre Criminologia Penitenciária. Ninguém dá valor ao cárcere, por isso publico artigos voltados a essa ciência transdisciplinar – para suprir essa carência acadêmica.
Essa é a minha proposta como estudioso do cárcere: fornecer estudos sobre a Criminologia Penitenciária, uma especialidade da Criminologia, uma Ciência Transdisciplinar.
“Importante mencionar que não existe uma Criminologia, mas muitas criminologias. (...) agora que temos o conhecimento e a metodologia para trabalhar com enfoques de gênero, é necessário que demonstremos os erros, parcialidades e a falta de objetividade dos estudos e investigações que foram feitas sem eles, não em um de desvalorizar o trabalho realizado seguramente com honestidade, mas para demonstrar que o que se tomou como fato inquestionável, universal e paradigmático, é na realidade apenas uma de muitas variáveis da realidade humana e porque os paradigmas extraídos do mundo masculino das ciências sociais redundam na negação da humanidade da mulher. Se conseguimos demonstrar isto, é possível que juntos, homens e mulheres, possamos criar modelos, parâmetros e paradigmas que respondam a uma concepção de mundo, e de nosso papel nele, mais harmonioso, pacífico e enriquecedor." (FACIO; CAMACHO, 1995, p. 39-74.)
Esse artigo foi criado em episódio ocorrido no regime fechado de cumprimento de pena no Estado de São Paulo. Essa é uma das histórias da qual presenciei e que mais me chamaram a atenção quanto ao processo de despersonalização e prisionização a que são submetidos os presos no cárcere.
Mas o que seria a “prisionização”?
“[...] processo lento, gradual, mais ou menos inconsciente, pelo qual a pessoa adquire o bastante da cultura de uma unidade social, na qual foi colocada, a ponto de se tornar característico dela." (THOMPSON, 1993, p. 23).
"[...] enquanto ele esteve na prisão, o mundo fora dela teve sua evolução, da qual ele não participou, tendo tido a sua própria, conforme a vivência prisional, e o convívio com os outros presos e o pessoal do estabelecimento. Daí resulta que, ao mesmo tempo que se desajustava do convívio social, se ajustava à vivência prisional e se integrava no convívio prisional." (MIOTTO, 1992, p.186)
Estávamos em um período muito sinistro no sistema prisional. O Primeiro Comando da Capital estava lutando para dominar as cadeias. Uma Unidade Prisional que sempre nos enviava presos era o C.O.C., criada com o objetivo de atender os pedidos de realização de exame criminológicos em outros tipos de exames dessa natureza (avaliativa do comportamento psicológico e conduta do criminoso).
Tal como algumas unidades, adquiriu a “Síndrome do Bom-Bril” (mil e uma utilidades). Fazia exames e ali também seria “cadeia de seguro”. Depois, mudando características, virou uma cadeia de preso “zica braba” (presos periculosos, que não tem disciplina e etc.). Nossa cadeia estava com muitos presos oriundos do C.O.C.
Eu sabia que ali na cadeia pessoas tinham o comportamento meio diferente em virtude da prisionização e da despersonalização. Na cela da SS (Seita Satânica) sempre tinham vasilhames com sangue. Eu não sabia se era somente humano, pois lá existiam ratazanas, ratos, gatos e um pombo branco.
Alguns escorpiões apareciam. Muitas larvas de mosquitos grudadas nas paredes se acumulavam devido ao lixo que era jogado pelas celas. Era difícil bater grades e verificar os “pirulitos” (as barras da grade) com tanta sujeira.
Na segunda-feira era pior ainda: restos do dia de visita no domingo. Também era muito comum ver camisinhas e fraldas pelo chão. O Raio IV (chamado de Castigo) ficava ao fundo da Unidade. Eu era zelador no Raio II e comecei a ouvir os presos chamando do Castigo.
Avisei o companheiro que trabalhava comigo e fui lá ver. Quem me chamou foi Kastrupp. Ele habitava a cela 23 do Raio que eu trabalhava. Estava cumprindo “castigo” por ter sido encontrado em sua cela um motor de câmera fria.
Isso mesmo: o motor conseguiu chegar oriundo da cozinha (segundo depois meu informante me contara) através dos panelões de arroz que vieram da cozinha, arroz esse que era servido no Raio pelos boieiros.
O motor foi encontrado dentro da cela do Kastrupp dentro de um início de um túnel em uma parede falsa, imperceptível de ser encontrado (se não fosse o informante, não acharíamos).
Kastrupp era um preso bem conhecido e gostava de conversar comigo. Me recordo de alguns fatos sobre ele. O Fantástico tinha ido atrás dele e de outros em um especial que versava sobre presos “famosos” que possuíam uma condenação alta. Chamei-o algumas vezes, pois o oficial de justiça estava na cadeia para ele tomar ciência de mais condenações e/ou comparecer as audiências. Muitas vezes ele dizia:
“Por favor, Seu Diorgeres, pode dizer que eles podem me mandar a cadeia. Eu não quero descer para assinar nada, mais uns anos não vão alterar minha situação, pois eu já tenho muito mais de 100 anos para cumprir.”
Outra história de Kastrupp era que ele foi surpreendido fumando e portando maconha ilegalmente no interior de uma viatura oficial, quando era transportado, como presidiário, da Casa de Custódia de Taubaté para São Paulo. Me recordo que ele me contara esse fato me dizendo que ele apenas quis ir fumando, por ser aquela viagem demorada e que lá já chegaria com um pouco de “bagulho” para fumar para relaxar.
Ele tinha péssimos antecedentes, possuindo inúmeras distribuições criminais, por furtos, roubos e estelionatos, com condenações e no Rio de Janeiro responde a outros feitos. Sempre me dizia que nos processos dos crimes do Pelé e do Fernando Henrique Cardoso os juízes sentaram a caneta na condenação. Eu dizia: “mas também contra quem você foi praticar crimes: contra o Rei e um ex – presidente da República de seu país”. Ele dava risada.
Kastrupp me disse que a cela do “pote” (como também é conhecido o castigo, tendo em vista o preso “ficar de molho” ali por um período de até trinta dias) estava com o “boi” (vaso sanitário) entupido e que precisavam trocar de “barraco”.
Em virtude de falta de funcionários, tive que fazer essa transferência e, aproveitando, busquei um produto para desentupir o boi. Fiz a transferência dos presos, e quando fechei a porta, um preso me disse que tinha esquecido algo lá na cela. Fui lá e não vi nada!
Disse isso ao mesmo e ele insistiu muito. Kastrupp “abraçou a causa dele” e me pediu para deixá-lo ir, que ele não estava mentindo. Deixei. Eu já tinha entrado lá e vasculhado. Pensei que ele iria me agredir, tentar me matar ou algo assim, porque não tinha nada na cela. Bom, eu não conseguia ver nada.
Ele saiu da cela, passou na minha frente e pediu licença. Escalou um pouco a parede e o respiradouro (recorte com grade na parede por onde entra o ar) da cela e pegou uma aranha preta enorme. Voltou em direção à saída da cela com o animal e me disse:
“Já era mestrão, muito obrigado!”
Abri a outra cela e ele voltou para onde estava o Kastrupp. Kastrupp me disse perguntando e dando risada. “Vai vendo, né?” (na cadeia é muito comum usarmos o “vai vendo”, usamos (presos e funcionários) quando algo de “estranho ou interessante nos chama a atenção”).
Lá estava a cadeia transformando um animal silvestre em animal doméstico. Me causou muita estranheza essa aranha, pois como que ele conseguiu adestrá-la em tão pouco tempo no Castigo, ou será que ele trouxe da cela dele?
Me lembrei de um pombo branco que também tinha no Raio II e que pertencia ao “Baianinho”. Só ele conseguia pegar o animal. Eu e outros presos também tentávamos pegá-lo, mas sempre sem sucesso.
De início, ter um animal assim como doméstico me causou estranheza, mas se eu estivesse preso e submetido a mais prisionização e despersonalização, que animal será que eu queria ter?
É, na verdade temos muito que aprender na cadeia e com a cadeia.
REFERÊNCIAS
MIOTTO, Armida Bergamini. Temas penitenciários. 1. ed. São Paulo: RT, 1992.
FACIO, Alda; CAMACHO, Rosália. Em busca das mulheres perdidas: ou uma aproximação crítica à criminologia. In: CLADEM. Mulheres: vigiadas e castigadas. São Paulo, 1995.
THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.