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É possível ANPP em crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor?

Henrique Gonçalves Sanches

Lucas Vieira Pimentel da Rocha Pita

Recentemente, chegou ao conhecimento do público o caso de um jogador do futebol brasileiro, o qual se envolveu num acidente automobilístico numa estrada do interior do estado de São Paulo com resultado morte.

Pelo noticiado, o jogador foi preso em flagrante delito e indiciado pela prática da conduta de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 do CTB), onde, em sede de audiência de custódia, lhe foi concedida a liberdade provisória mediante o pagamento de alto valor de fiança.

A despeito da gravidade dos fatos, máxime a ocorrência do evento morte, uma interessante e polêmica questão deverá ser enfrentada pela Justiça: ao investigado pela prática do homicídio culposo na direção do veículo poderá ser proposto o acordo de não persecução penal?

Pois bem, é sabido que o acordo de não persecução penal atende uma politica criminal de despenalização aos investigados pela prática de crimes de média gravidade, onde, nos termos do art. 28-A do CPP, uma vez preenchidos os requisitos, não incidindo as vedações e, uma vez cumprida as condições legais ajustadas, a ação penal não será deflagrada e a punibilidade do investigado extinta.

Neste sentido, o Ministério Público poderá propor o negócio jurídico desde que: a) não sendo caso de arquivamento do inquérito; b) tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal; c) que esta não seja caracterizada pela violência ou grave ameaça; d) em que a sua pena mínima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos; e) desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime e; f) mediante condições ajustadas cumulativa e alternativamente.

Entretanto, ainda que o crime do homicídio culposo na direção de veículo automotor, em tese, seja suscetível ao ANPP em razão do quantum da pena mínima prevista – detenção de dois a quatro anos – existem duas correntes que se dividem sobre a (im)possibilidade da sua proposta pelo Ministério Público.

Uma primeira corrente defende que o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor não é suscetível de acordo de não persecução penal, conquanto o legislador ao determinar a proibição do negócio aos casos de crimes caracterizados pela violência optou por uma política criminal de não beneficiar injustos com maior reprovação em razão do desvalor da ação.

Neste sentido, RODRIGO LEITE FERREIRA CABRAL (Manual do Acordo de Não Persecução Penal: à luz da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Juspodivm, 2020) esclarece que o termo “violência” utilizada pelo legislador para proibir o ANPP “[…]pode ser tanto a violência dolosa (v.g. crime de roubo), quanto a violência culposa (v.g. homicídio culposo). Isso porque, o legislador não delimitou a restrição a uma determinada modalidade de imputação subjetiva (o dolo), como o fez, por exemplo, no parágrafo único do art. 71, do Código Penal, nem previu expressamente a possibilidade de ANPP para todos os delitos culposos, como feito no art. 44, I, in fine, CP.”

          E, ao tratar especialmente no caso de homicídio culposo, o citado autor também destaca que “[…] é certo que o delito de homicídio culposo ostenta um injusto extremamente grave(maior desvalor do resultado), o que não recomenda, em geral, a possibilidade da celebração do acordo de não persecução penal, uma vez que não estariam presentes os objetivos preventivos do acordo, consubstanciados na necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do delito”

               De maneira oposta, uma outra corrente sustenta a possibilidade da celebração do ANPP em casos de homicídio culposo, inclusive na direção de veículo.

 Seguindo esta orientação, o Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio do Enunciado 74 do CAOCrim, se posiciona no sentido que: “É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, pois, nesses delitos, a violência não está na conduta, mas no resultado não querido ou não aceito pelo agente, incumbindo ao órgão de execução analisar as particularidades do caso concreto”.

          Não diferentemente, o Enunciado 24 do GNCCRIM (Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal) tem o posicionamento no sentido que “É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível”.

          Uma respeitável doutrina também encampa a possibilidade da celebração do negócio jurídico no crime de homicídio culposo, eis que “[…] Para que impeça a celebração do acordo de não persecução penal, a violência ou grave ameaça deve ser circunstância elementar da conduta dolosa. Assim, crimes culposos que porventura tenham produzido resultado violento ou morte permitem, ao menos em tese, acordo de não persecução penal.” (GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal Comentado [livro eletrônico]. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.)

          A questão é incipiente na jurisprudência, mas existe registro de decisão no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde a 12ª Câmara de Direito Criminal, no julgamento da apelação criminal 0022007-23.2013.8.26.0004, de relatoria do Desembargador HEITOR DONIZETE DE OLIVEIRA converteu o julgamento em diligência, para determinar o retorno dos autos ao juízo de direito de origem com a finalidade de possibilitar a proposta do ANPP em caso envolvendo homicídio culposo na direção de veículo.

          Como visto, a corrente que defende a inaplicabilidade do acordo de não persecução penal ao crime de homicídio culposo na condução de veículo automotor é respeitável e sedutora. Entretanto, uma eventual proibição generalizada, como defende essa corrente, além de não atender a política criminal do instituto com racionalidade, agride a essência do princípio da culpabilidade, em especial, a desconsideração do grau de reprovabilidade das condutas dolosas e culposas.

          Feitas estas considerações, deve ser tida como acertada a orientação da corrente que entende ser possível a proposta do acordo de não persecução penal no caso de homicídio culposo na direção de veículo, onde a viabilidade do negócio deve levar em consideração as circunstâncias do caso concreto para se aferir o atendimento do critério de necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime.

Referências bibliográficas:

  1. MPSP
  • CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal: à luz da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Juspodivm, 2020.
  • GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código De Processo Penal Comentado [livro eletrônico]. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

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