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Cabe ANPP ao agente que pratica crime violento contra animal?

A Lei n. 9.605 de 1998 dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, prevendo em seu quinto capítulo, primeira seção, os crimes contra a fauna. Ou seja, os crimes praticados contra a vida animal, com exclusão da espécie humana. Ocorre que, mormente pela análise dos preceitos secundários dos tipos penais presentes na referida seção, percebe-se a possibilidade de aplicação de diversos institutos despenalizadores, dentre os quais destacamos o novel Acordo de Não Persecução Penal.

Cuida-se de nova modalidade de justiça negocial, que diante de seu caráter reparatório e restaurativo apresenta particular importância diante do Direito Ambiental, consagrando-se os princípios e os vetores da preservação ambiental de uma política verde.

A arquitetura do acordo, que apresenta requisitos objetivos e subjetivos, depreende-se do artigo 28-A do Código de Processo Penal e, adotando-se subdivisão organizacional trazida por Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2021, p. 83-122), pode ser assim tabelada:

Tendo essa informação como pano de fundo, acalorada discussão pode ser travada acerca da possibilidade de aplicação do benefício ao agente que pratica o crime descrito no artigo 32 da Lei 9.605/98, consistente em “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”.

Uma interpretação literal do dispositivo legal nos conduzirá à conclusão pela possibilidade do benefício do Acordo de Não Persecução Penal ao autor de crime violento contra animais, haja vista que – ignorando-se, neste momento de discussão, os questionamentos que orbitam a necessidade e a suficiência para a reprovação e a prevenção do crime – o principal requisito para a negativa do benefício, qual seja, a necessidade de ser o crime praticado sem violência ou grave ameaça, é substancialmente de crimes contra a pessoa.

 Entretanto, esse caminho hermenêutico está baseado em ultrapassada visão de que os animais são meros objetos, bens móveis de valor econômico.

Consolidou-se na doutrina moderna e na jurisprudência dos Tribunais (STJ, AREsp 1860806 – SP 2021/00082785-0, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 18.06.2021 – cuja lide versava sobre pensão alimentícia de animais de estimação – e AREsp 1794477 – SP 2020/0308842-5, Rel. Min. Humberto Martins, j. em 11/02/2021 – cuja lide versava sobre regulamentação da guarda de animais de estimação) que os animais são seres sencientes, já que sentem emoções como angústia, medo e, evidentemente, dor física.

Senciente é aquele que é capaz de sentir ou perceber através dos sentidos, que possui ou consegue receber impressões ou sensações. Assim, “com o novo status, os animais ficam equiparados, no tocante à sensibilidade, aos homens, porém cada um carrega as diferenças específicas relacionadas a seus interesses e necessidades” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2019).

Navegando em águas mais profundas, mister distinguir a senciência da sapiência:

A palavra senciência não guarda afinidade etimológica com a palavra sapiência. Ambas carregam raízes provenientes do latim. Enquanto sapiência (sapere) tem o significado de inteligência, conhecimento, senciência (sentire) tem o significado de sentir, ou na capacidade de sentir. […] Quer isto significar que, assim como o humano estabeleceu suas regras e quer ser bem tratado, de igual forma o animal, pelo regramento natural, quer idêntico tratamento (OLIVEIRA JÚNIOR, 2019).

Em verdade, há tempos se debate acerca da necessidade de benignidade perante animais não-humanos, tendo a Constituição Federal, em seu artigo 225, §1º, inciso VII, consagrando a proteção da fauna com a consequente proibição de condutas que submetam os animais à crueldade.

Neste ponto, sem se olvidar a inclusão do §7º ao artigo 225 da Constituição e o efeito Backlash ocorrido, rememora-se decisão do Supremo Tribunal Federal (STF. Plenário. ADI 4983/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 06/10/2016 – Info n. 842) que, à luz da ponderação de princípios, considerou que apesar do Estado garantir direitos culturais, a denominada vaquejada seria incompatível com a vedação de práticas que submetam animais à crueldade.

“Assim, embora [a vaquejada seja] considerada patrimônio cultural do povo nordestino, nos termos do voto do Relator, a crueldade intrínseca a tal prática torna intolerável a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada” (NOVELINO, 2021, p. 945).

Daí que uma interpretação histórica, sociológica e sistemática das condições do Acordo de Não Persecução Penal deve nos guiar à conclusão da impossibilidade de oferecimento do benefício ao agente que incorre no crime do artigo 32 da Lei n. 9.605/98, haja vista ser esse praticado com violência, mesmo que em face de animal. Isso se dá justamente por serem os animais seres sencientes, assim como pela cogente garantia da ampla incidência do princípio da vida digna, aplicando-o aos animais não humanos.

Nesse viés, urge considerar que a violência rechaçada pelo benefício despenalizador é aquela prevista na ação. “[…] A violência que impede o ajuste é aquela presente na conduta, e não no resultado. Logo, homicídio culposo, por exemplo, admite o ANPP” (CUNHA, 2020 p. 488).

Aliás, segue nessa esteira o teor do Enunciado n. 23 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM):

É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível.

Destarte, considerando que sob uma ótica ontológica a violência advinda do ânimo do agente é a mesma quando praticada contra um animal ou um humano, ela não pode ser desconsiderada pelo parquet para a análise do oferecimento do benefício, que passa a ser incabível.  

E isso seria analogia in malam partem? Penso que não!

Apesar da doutrina trazer acertado entendimento de que a citada violência se restringiria à violência contra a pessoa – não tendo espaço na vedação a violência dos crimes cometidos contra as coisas, como no caso do furto mediante rompimento de obstáculos – a verdade é que o legislador não limitou o conceito de violência. Outrossim, seguindo o norte lógico introduzido, a violência em face de animais apresenta características sui generis.

Por fim, toda a discussão apresentada encontra espaço argumentativo e guarida no requisito aberto da “necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção” (CPP, art. 28-A, caput).

Segundo leciona Rodrigo Leite Ferreira Cabral, o requisitotrabalha com critério que tem origem na concepção mista ou retributivista unificadora da pena, sendo que, com enfoque na ressocialização, a simples existência de elemento de informação que não recomende a celebração da avença – exatamente por impossibilitar a devida ressocialização do agente – deverá ser considerado e preponderante para a sua negativa. “Isso porque, o que deve estar provado nos autos é que o acordo cumpre esses requisitos político-criminais, não o contrário” (CABRAL, 2021, p. 100).

Então, questiono o nobre leitor: caberia Acordo de Não Persecução Penal ao autor do crime do artigo 32 da Lei 9.605/98?

REFERÊNCIAS

CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.

DE OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quintino. Animais são seres sencientes. Migalhas. 2019 Disponível em < https://www.migalhas.com.br/depeso/309993/animais-sao-seres-sencientes > Acesso em 23 de dezembro de 2022.

NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. Salvador: JusPodivm. 2021.

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