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Ao Criminalista a pior tarefa: lidar com a injustiça


Por Iverson Kech Ferreira


Imannuel Kant (1724/1804) propôs a leitura de um contrato simples que regeria toda uma sociedade: se houver uma ação positiva em si e que traga, não em um pensamento utilitarista, mas sim, numa concepção real da palavra bondade, benefícios em prol de um bem comum, essa seria então aceita como a ação pretendida, em suas palavras (1986, p. 19):

“O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”

O que mais poderia se tornar universal então que não seja em prol desse apregoado bem comum?

Ultimamente os valores não são mais os mesmos que os vividos na época kantiana e as virtudes se confundem com o bem realizado para si mesmo, num pragmatismo individual, que apenas observa um lado da moeda. Pensemos na seguinte situação: um homem de avançada idade, chamaremos de Juca, foi preso ao dar entrada em sua aposentadoria, por um mandado de prisão expedido tempos atrás contra ele, no Acre. Ao receber tal informação, o senhor conta que morou em tal capital e que perdera certa vez seus documentos, mas como era de costume na época, foi até os correios algumas vezes contar com a sorte de quem alguém os tivesse encontrado e enviado até o setor, fato que nunca ocorreu. Assim, fez nova identidade, não pestanejou.

Anos depois mudou-se para São Paulo onde passou quarenta anos de sua vida laborando como feirante. Ao ser indagado sobre a ordem de prisão, Juca nada sabia e nada poderia responder, pois nunca furtou um pé de couve sequer, mesmo em épocas de dificuldades tremendas. Juca foi levado até a delegacia e lá telefonou aos familiares, que em peso, contestaram o ato. Após contratarem um advogado, este pediu ao juízo que houvera emitido a ordem de prisão que comparasse as digitais de Juca com o suposto verdadeiro Juca do Acre, o real autor de alguma infâmia penal. Ao verificar as digitais de Juca e as digitais do inquérito onde o falso Juca era acusado e respondia em liberdade até que saísse o seu julgamento, notou o juízo o obvio: eram diferentes. O Juca falso achou os documentos anos atrás e os falsificou, o Juca verdadeiro sentiu na pele a justiça e a injustiça. Após sua liberação na delegacia nosso herói disse chorando:

“…e pensar que sempre vivi minha vida pelos caminhos corretos.”

Claro que o nome do homem não era Juca porem a situação ocorreu de fato, mas a lição que tiramos é deveras importante para o direito criminal e para aqueles que atuam nessa área, muitas vezes bestializados como advogados do diabo, “dinheiristas”, homicidas, entre outros perjúrios que ouvimos, tantas vezes, até em reuniões de família, quem labora nessa área há de concordar, hora ou outra. Mas o prisma aqui é essencial para traçarmos a ideia do direito democrático e, sobretudo, daquele sentido/bem arguido por Beccaria (2004): humanitarismo.

Os valores mudaram e as virtudes se tornaram pragmáticas, não mais um sentimento único coerente à todos, mas sim, numa forma de buscar o reconhecimento pessoal, não mais que isso, como desenhado por Bauman (2001) em sua modernidade liquida. A ação tomada pela polícia, delegado, agente do INSS, seguiu o rito em normalidade, afinal de contas, contra o idoso jazia um mandado de prisão, o que mais poderia ser feito? Todavia, ao debruçar os estudos para Kant e seu imperativo categórico, que afirma um contrato supra na sociedade, que age quando entende que a ação é boa em si, observa-se um homem que trabalhou honestamente a vida inteira passando a situação que passou; inaudita para ele. Para Kant, a pena deve ser justa, ou seja, proporcional ao crime cometido, pois pena é um imperativo categórico, é um fim em si mesmo, devendo então ser proporcional à infração. O crime de ter perdido o documento de identidade e não ter feito o Boletim de Ocorrências na Policia Civil, esse foi o crime.

Sua pena foi pequena, afinal, o susto, a ida até a delegacia, contratar um advogado, esperar a resposta do juízo em plantão, e o pior, saber que estava sendo procurado pela policia. Apesar disso, a pena ainda existiu. Não fosse aquele “dinheiristas”, advogado do diabo, o combalido nas reuniões de família, provavelmente, a demora seria ainda maior.

As virtudes hoje são outras. Não importa o passado limpo ou o quanto tenha trabalhado em harmonia com as normas cívicas e sociais, não importa o quão bom seja no convívio ou o quanto esteja dentro do círculo de igualdade na sociedade: o que importa é o que se pode provar, não mais que isso. Dessa forma, o estado de democrático de direito deve seguir os passos daquele humanitarismo pensado anteriormente por Beccaria, no processo penal onde prevaleçam os direitos e garantias fundamentais, ainda mitigadas ou não consideradas em seu todo por alguns.

Ao pensar que a pena de Juca poderia ser maior ainda, como a dos irmãos Naves ou o caso de Marcos Mariano da Silva, que tinha um homônimo homicida, sendo preso em seu lugar no ano de 1976, perdendo a visão numa rebelião dentro do presidio, passando 19 anos na cadeia, perdeu emprego, família e morreu de infarto quando conseguiu a liberdade, isso assusta. Após seis anos o real assassino foi preso e o Estado de Pernambuco foi condenado a pagar a indenização equivalente a R$2 milhões de Reais ao falecido.

Ao pensar que a pena de Juca poderia ter sido maior envolvemo-nos mais com a ideia de Kant e seu ideal de justiça. Ao imaginar isso nos encontramos com inúmeras situações, tanto na história passada quanto a nem tão distante tempo de casos onde as garantias fundamentais não existiram, onde novos Edmund Dantes e Jean Valjeans eram e são forjados a cada erro, a cada doutrinador que teima em expurgar os direitos fundamentais do cidadão, as garantias devidas e o devido processo legal. Não estamos tão distante desses acontecimentos, como vimos. Esse é um assunto, infelizmente, atual e deve ser debatido amplamente nas instituições de ensino, órgãos de classe, tanto social quanto jurídicos, numa ampla dogmatização humanitária, bem como quis Cesare Bonesana. 


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. São Paulo: Zahar, 2001.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986.

Iverson

Imagem do post: The Huffington Post

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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