Ao tentar colaborar, cartórios podem inviabilizar a prevenção à lavagem de dinheiro (e serem responsabilizados por isso!)
Ao tentar colaborar, cartórios podem inviabilizar a prevenção à lavagem de dinheiro (e serem responsabilizados por isso!)
Na impossibilidade de o Estado sindicar todas as atividades de cunho financeiro ocorridas, transfere-se a determinados entes o dever de comunicação de operações atípicas, que possam conter indícios de crimes econômicos.
No contexto, a Lei 9.613/98, que tipifica a Lavagem de Dinheiro, estabelece deveres de identificação de clientes, manutenção de registros de atividades (art. 10) e comunicação de operações atípicas ou suspeitas (art. 11) a alguns setores da economia, dentre os quais os notários e registradores.
Essa obrigação legal vem expressa na regra do art. 9º, da Lei 9.613/98, que prevê que se submetem aos deveres referidos os “registros públicos” (inc. XIII) e as pessoas físicas ou jurídicas que prestem serviço de assessoria ou assistência, de qualquer natureza, em operações de “compra e venda de imóveis” (inc. XIV, a).
Assim, estabeleceu-se, através da Ação 12/2019, da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção de Lavagem de Dinheiro), a necessidade de criação de normativa específica para “integrar notários e registradores no combate à prevenção aos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção”. Tal objetivo restou concretizado com o Provimento n. 88/2019, do CNJ, que disciplinou a “política, os procedimentos e os controles a serem adotados pelos notários e registradores visando à prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro” e “financiamento ao terrorismo”.
Análise do Provimento revela que, dentre as medidas preventivas a serem adotadas por cartórios, encontra-se o dever de “avaliar a existência de suspeição nas operações ou propostas de operações de seus clientes” (art. 5º), devendo comunicar à Unidade de Inteligência Financeira – UIF (antigo COAF) “quaisquer operações que, por seus elementos objetivos e subjetivos, possam ser consideradas suspeitas de lavagem de dinheiro ou financiamento do terrorismo” (art. 6º).
Ainda em análise do Provimento, verifica-se que foram instituídas hipóteses de comunicação obrigatória e de comunicação facultativa de operações ou propostas de operações suspeitas ou atípicas perante os cartórios.
Assim, por exemplo, é caso de comunicação obrigatória à UIF a “operação que envolva o pagamento ou recebimento de valor em espécie, igual ou superior a R$ 30.000,00 (trinta mil reais) ou equivalente em outra moeda, desde que perante o tabelião”, bem como a “operação que envolva o pagamento ou recebimento de valor, por meio de título de crédito emitido ao portador, igual ou superior a R$ 30.000,00 (trinta mil reais), desde que perante o tabelião” (art. 23, I e II, do Provimento). São ainda hipóteses de comunicação obrigatória aquelas disciplinadas nas regras dos arts. 25 e 27 do Provimento.
Oportuno dizer que a comunicação obrigatória não significa, necessariamente, que a operação ou proposta de operação é criminosa. Trata-se apenas de casos nos quais se estabeleceu uma espécie de presunção de atipicidade da operação. Em outros termos, a comunicação obrigatória não significa que os envolvidos na operação serão, necessariamente, investigados e/ou processados criminalmente, mas apenas que os dados da operação serão registrados na UIF e, no futuro, poderão ser utilizados para instruir eventual investigação ou processo criminal.
Por outro lado, as hipóteses de comunicação facultativa são aquelas nas quais o registrador ou notário realizará uma análise subjetiva do caso concreto e, considerando suspeita ou atípica a operação ou proposta de operação, realizará a comunicação à UIF.
A regra do art. 20, do Provimento, estabelece balizas gerais para a análise da suspeição ou atipicidade das operações nos casos de comunicação facultativa, afirmando que “podem configurar [mas não necessariamente configuram] indícios da ocorrência de crimes de lavagem de dinheiro” (caput), por exemplo, “a operação que aparente não resultar de atividade ou negócios usuais do cliente ou do seu ramo de negócio” (inc. I) ou “a operação cuja origem ou fundamentação econômica ou legal não sejam claramente aferíveis” (inc. II), dentre outras. Há, ainda, situações que podem fornecer indícios de crime de branqueamento de capitais ou financiamento ao terrorismo nas regras dos arts. 24, 26 e 28, do Provimento.
Veja-se que, nestes casos, a comunicação não é obrigatória, ou seja, o registrador, notário ou oficial de registro somente comunicará a operação se, a partir de uma análise do caso concreto, entender que existem fundados indícios de crime. Em outros termos, as situações narradas nos arts. 20, 24, 26 e 28 do Provimento servem apenas como parâmetros que, isolada ou cumulativamente, permitirão fornecer eventuais indícios de atividade criminosa.
É possível, por outro lado, que as situações indicadas nos dispositivos legais estejam presentes e, mesmo assim, após criteriosa análise do caso concreto, verifique-se que a situação não contém indícios de crime. Imagine-se, por exemplo, uma pessoa de 60 anos de idade que, em toda a sua vida, adquiriu apenas um imóvel, na sua juventude e, após décadas, adquire um novo imóvel, compatível com seus ganhos lícitos. Veja-se que há, aqui, um caso de operação que não resulta de atividade ou negócio usual do cliente (art. 20, I, do Provimento), mas que, pelas características gerais, não contém indícios de atipicidade, razão pela qual não deve ser comunicada à UIF ou a qualquer outro órgão.
Ainda no âmbito das comunicações, vale dizer que a regra do art. 12, da Lei de Lavagem de Dinheiro, prevê severas sanções administrativas àqueles que descumprirem os deveres de avaliação e comunicação de operações suspeitas ou atípicas, podendo a punição variar de simples advertência (inc. I), até multas elevadíssimas, que podem chegar a milhões de reais (inc. II), inabilitação temporária para o exercício das funções, por até 10 anos (inc. III) e cassação ou suspensão para o exercício da atividade (inc. IV). Oportuno referir que quaisquer dessas sanções podem ser aplicadas a notários e registradores, por força do art. 40, do Provimento n. 88/CNJ.
Especificamente nos casos de sanções pecuniárias, verifica-se que as multas podem ser aplicadas tanto em caso de dolo como culpa (art. 12, § 2º, da Lei 9.613/98), ou seja, não apenas os descumprimentos intencionais e deliberados dos deveres de comunicação são puníveis, mas também se sancionam os defeitos nas comunicações decorrentes de negligência, imprudência ou imperícia.
Em linhas gerais, essas sanções administrativas podem ser aplicáveis nos casos de (i) não comunicação de operações obrigatórias; (ii) não comunicação de operações facultativas consideradas suspeitas ou atípicas ou (iii) de comunicação realizada com má-fé, ressaltando-se que tanto a Lei de Lavagem de Dinheiro (art. 11, § 2º) como o Provimento n. 88/CNJ (art. 39), preveem que não são puníveis “as comunicações de boa-fé”.
Feitas essas considerações, verifica-se que a objetividade legal das hipóteses de comunicação obrigatória não gera dúvidas sobre os casos que devem ou não ser comunicados à UIF. Por outro lado, a subjetividade dos casos de comunicação facultativa e a indefinição do que seria considerada comunicação de má-fé podem gerar algum nível de insegurança jurídica, razão pela qual é prudente a definição de balizas mais precisas, a fim de evitar que o notário, registrador ou oficial de registro sofra punições pelo descumprimento dos deveres estipulados no Provimento 88/CNJ.
No contexto, uma das hipóteses que pode gerar punição administrativa, por caracterizar hipótese de comunicação de má-fé, consiste naquilo que se pode denominar de excesso de comunicação.
Este excesso pode ocorrer, por exemplo, quando uma serventia opte por informar indiscriminada e absolutamente todas as operações ou propostas de operações que sejam de comunicação facultativa (arts. 20, 24, 26 e 28, do Provimento 88/CNJ), sem qualquer análise para verificar os casos que efetivamente contenham fortes indícios de crime.
Obviamente, se o Provimento n. 88/CNJ distinguiu hipóteses de comunicação obrigatória e facultativa, é porque no último grupo de casos a informação à UIF somente deve ser prestada quando houver forte indicativo de atipicidade. Em linguagem simples, haverá casos que serão comunicados e casos que não serão comunicados, tudo a depender da análise das circunstâncias fáticas e da existência ou não de indícios de atividade criminosa.
Aliás, essa lógica de comunicações obrigatórias e não obrigatórias atende a uma finalidade pragmática importante, qual seja, a não inviabilização das atividades de fiscalização e persecução dos órgãos públicos que recebem as comunicações. É que se todos os cartórios resolverem comunicar, indiscriminadamente, todas as infinitas operações realizadas, mesmo aquelas de comunicação facultativa que não contenham indicativos de atipicidade, estarão atuando de forma a obstruir – e não de colaborar – com os órgãos persecutórios, sendo plenamente admissível que essa situação seja caracterizada como comunicação de má-fé.
Nesse sentido, assusta a informação (aqui) noticiada pela ANOREG/BR, de que no primeiro mês de vigência do Provimento n. 88/CNJ, os cartórios lideraram o número de comunicações de operações suspeitas (pouco menos de 40 mil), estando à frente inclusive de instituições bancárias.
É bastante provável que esse número significativo de operações – que tende a aumentar, se nenhuma providência for tomada – decorra do fato de que muitos cartórios estejam simplesmente lavando as mãos (ou tentando lavá-las), vale dizer, comunicando à UIF e demais órgãos de controle absolutamente todas as operações, sejam obrigatórias ou facultativas.
Como se disse, essa postura em nada contribui para a prevenção à Lavagem de Dinheiro ou Financiamento ao Terrorismo. Antes, dificulta a atividade de fiscalização, investigação e persecução criminal do Estado, podendo ser interpretada como atitude de obstrução, caracterizando comunicação de má-fé e submetendo o cartório a sanção administrativa.
Um dos possíveis antídotos para se evitar o excesso de comunicação está no próprio Provimento n. 88/CNJ, na regra do art. 7º, prevê que os cartórios devem implementar procedimentos e controles para efetivação da política de combate à Lavagem de Dinheiro e Financiamento ao Terrorismo, dentre os quais, exemplificativamente, o “treinamento dos notários, dos registradores, dos oficiais de cumprimento e empregados contratados” (§ 1º, inc. I) e a “verificação periódica da eficácia da política e dos procedimentos de controle adotados” (inc. V).
Em resumo, bons treinamentos e boas assessorias quanto à implementação do Provimento n. 88/CNJ serão sempre salutares e bem vindas, não apenas para que os cartórios sirvam como verdadeiros mecanismos de prevenção à Lavagem de Dinheiro, Financiamento ao Terrorismo e outros crimes, mas também para se blindarem (ou, ao menos, mitigarem sensivelmente) riscos de punições cíveis e administrativas decorrentes do excesso de comunicação.
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