A aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia
A aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia
O princípio da insignificância, embora não possua expressa previsão legal, é amplamente reconhecido pela doutrina, sendo pacífica sua aplicação pelos tribunais pátrios como causa excludente da tipicidade.
No entanto, questiona-se se o Delegado de Polícia poderia deixar de lavrar auto de prisão em flagrante com base no referido princípio, ou mesmo não instaurar inquérito policial, ou, ainda, deixar de indiciar o investigado, caso já em tramitação o procedimento policial, adotando mesmo fundamento.
Para responder a tal questionamento, cumpre analisar, primeiramente, no que consiste o princípio da insignificância (ou bagatela), o qual, embora com origem no Direito Romano (restrito ao direito privado), que pregava que o Poder Judiciário não deve se ocupar de coisas pequenas (minimus non curat praetor), foi incorporado ao Direito Penal apenas na década de 1960 pelo jurista alemão Claus Roxin.
Fundamentado em valores de política criminal e buscando uma aplicação restritiva da lei penal, o princípio da insignificância defende uma análise da tipicidade material, e não apenas formal, do fato, ou seja, não basta a mera subsunção do fato à norma penal, somente se justificando a atuação do Estado na esfera penal quando presente uma relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido.
Assim, mínimas ofensas aos bens jurídicos tutelados não devem ser objeto de repressão pelo direito penal, o qual tem de ser aplicado como ultima ratio (princípio da intervenção mínima), devendo delas se ocupar os demais ramos do direito.
Portanto, para que o fato seja considerando típico, devem estar presentes a tipicidade formal (juízo de adequação entre o fato cometido e o tipo penal descrito na norma) e a tipicidade material (relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido); uma vez ausente a tipicidade material, será o fato atípico, ante a aplicação do princípio da insignificância, causa excludente da tipicidade.
No entanto, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para que seja aplicado o princípio da bagatela, devem estar presentes requisitos objetivos, relacionados ao fato, e subjetivos, relacionados ao agente e à vítima. No que tange aos objetivos, exige-se:
a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Já em relação aos subjetivos, analisa-se a reincidência, a habitualidade delitiva e a condição (ou não) de militar do agente, os quais, caso presentes, vedam a aplicação do referido princípio – quanto à reincidência, há divergência jurisprudencial –, bem como as condições da vítima para dimensionar a extensão do dano a ela causado.
No que se refere à invocação do princípio da bagatela em sede policial, objeto do presente artigo, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do HC 154.949/MG (STJ, Rel. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 03.08.2010), já se manifestou no sentido de que o Delegado de Polícia, ao lhe ser apresentada uma situação de flagrância, deve, no estrito cumprimento do dever legal, proceder à autuação em flagrante, uma vez que cabe somente ao Poder Judiciário, a posteriori, a análise acerca da aplicação do princípio da insignificância, de acordo com o caso concreto.
Tal entendimento, data máxima vênia, deve ser repelido, uma vez que, como bem destacado por Masson (2015, p. 44), “o princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial”. No mesmo sentido, defendendo o poder e o dever do Delegado de Polícia em aplicar o princípio da insignificância, Khaled Jr. e Rosa (2014) afirmam que:
Não só os Delegados podem como devem analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os Delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal.
Em outras palavras, deve o Delegado desempenhar papel condizente com a estrutura racional-legal de contenção do poder punitivo e para tanto, é natural que disponha de atribuição para fazer os juízos necessários ao sentido apropriado da tipicidade no marco contemporâneo: se o fato é atípico, não pode ensejar persecução penal e manutenção do indivíduo preso em flagrante em função de situação insignificante. E não basta ser formalmente típico. É preciso ser materialmente típico.
Além disso, conforme referido pelo Ministro Celso de Melo no julgamento do HC 84.548/SP (STF, Rel. Marco Aurélio, j. 21.06.12), o Delegado de Polícia é o “primeiro garantidor da legalidade e da justiça”, ou seja, deve ser o primeiro a garantir os direitos fundamentais do cidadão, evitando abusos contra ele praticados e assegurando o exercício de suas garantias constitucionais.
Por outro lado, segundo estabelece o artigo 2º, caput, da Lei nº 12.830/13, “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”, prevendo, ainda, o seu parágrafo 6º, que “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.
Dito isso, resta claro que as atividades da autoridade policial não possuem cunho meramente administrativo, mas, sim, pré-processual, sendo o Delegado de Polícia o primeiro a realizar uma análise técnico-jurídica do caso concreto, devendo resguardar os direitos e garantias fundamentais daquele a quem se atribui a prática de uma infração penal.
Nesta condição, faz claro juízo de valor acerca dos fatos que lhe são apresentados, verificando não apenas a presença de indícios de autoria e materialidade, mas, também e principalmente, os elementos que compõem o crime, quais sejam: tipicidade, ilicitude e culpabilidade.
Portanto, estando o Delegado de Polícia diante de uma situação fática que permita a aplicação do princípio da insignificância, assim deverá proceder, seja deixando de lavrar o auto de prisão em flagrante, seja não instaurando inquérito policial, ou, ainda, deixando de indiciar o investigado, caso já em tramitação o procedimento policial, decisão, porém, que deverá ser sempre fundamentada.
A aplicação do princípio da bagatela, já na fase policial, evita constrangimentos desnecessários ao investigado, decorrentes da adoção de providências de polícia judiciária por fato materialmente atípico, faltando justa causa para tanto.
Além disso, a lavratura de um auto de prisão em flagrante e a instauração de um inquérito policial geram altos custos decorrentes da movimentação da máquina estatal, os quais, suportados pela coletividade, poderiam ser evitados com a adoção do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia.
Dessa forma, por todas as razões aqui expostas, não resta outra conclusão senão a de que a autoridade policial, como primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão e no exercício de função de natureza jurídica, deve aplicar o princípio da insignificância quando presentes seus requisitos.
Assim agindo, estará o Delegado de Polícia assumindo sua missão constitucional, que não se resume à atividade investigativa, cabendo-lhe, também, evitar abusos e constrangimentos indevidos, bem como a desnecessária movimentação da máquina estatal.
REFERÊNCIAS
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MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado. 9. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v. 1.