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Apropriação indébita previdenciária

Apropriação indébita previdenciária

Por Daniel Lima, José Muniz Neto e Kéops Mendes

Começamos hoje, com o contributo do ilustre advogado previdenciarista e criminalista Keóps Mendes, uma série de textos sobre crime previdenciários que se encontram disciplinados no Código Penal. O principal objetivo destes textos será analisar dogmaticamente, à luz da teoria geral do crime, os principais tipos penais previdenciários para que os operadores do direito possam entender, de forma clara e precisa, quais são as condutas que estão abrangidas por cada tipo penal que disciplina as condutas praticadas em desfavor do sistema de seguridade social.

De início falaremos sobre o crime de apropriação indébita previdenciária, que possui tipificação legal no art. 168-A do Código Penal Brasileiro, nos seguintes dizeres:

Art. 168-A – Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

§ 2º É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§ 3º É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:

I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou

II – o valor da contribuição devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.

Como se sabe, o referido crime tem por finalidade precípua tutelar o patrimônio da previdência social, pois a preservação destes valores é essencial para que se assegure a justa distribuição dos benefícios e serviços entre os usuários do referido sistema de custeio. Assim sendo, pode-se afirmar que no crime de apropriação indébita previdenciária o bem jurídico protegido é o patrimônio da previdência social.

Trata-se, portanto, de crime próprio, já que é só o sujeito responsável pelo recolhimento quem pode incorrer no mencionado tipo penal, não admitindo, assim, a possibilidade de “terceirização” da conduta criminosa – como também ocorre, por exemplo, no crime de falso testemunho (art. 342, CP).

No falso testemunho só o declarante é quem pode incidir na conduta tida por delituosa – consistente em emitir falsa declaração, negar ou calar a verdade em juízo ou administrativamente – impedindo qualquer possibilidade de coautoria ou participação no mencionado crime.

Desta feita, no que tange o crime de apropriação indébita previdenciária, é correto afirmar que o responsável pelo recolhimento da previdência social pode ser a própria empresa, que deverá depositar aos cofres da previdência os valores descontados dos segurados, ou ainda as empresas adquirentes, consignatárias ou cooperativas responsáveis por recolherem as contribuições dos produtores rurais.

Neste diapasão, o sujeito ativo é o administrador que tenha participado da gestão da empresa na data da sonegação, decidindo pelo não recolhimento da contribuição. Já o sujeito passivo é o próprio Estado que deixa de arrecadar as contribuições devidas.

A conduta típica, por sua vez, é representada pelo verbo “deixar”, o que evidencia a natureza omissiva do mencionado crime. Assim, semelhante ao que ocorre com o crime de omissão de socorro (art. 135, CP), no presente tipo o não repasse ou não recolhimento dos valores arrecadados à previdência caracterizam o mencionado delito.

Trata-se, na ótica de certa doutrina, de crime formal. Contudo, para os Tribunais Superiores, o crime de apropriação indébita previdenciária (168-A), assim como o de sonegação fiscal (337-A),é crime material, uma vez que se exige a constituição definitiva do crédito tributário em âmbito administrativo para que o MP possa oferecer a respectiva ação penal.

Entende-se, assim, que a constituição do crédito tributário, implicitamente, já configura o dano material aos cofres da previdência, o que nos leva à conclusão de que o crime de apropriação indébita previdenciária é, na verdade, um crime material. Noutros dizeres, o resultado naturalístico na apropriação indébita previdenciária, qual seja o dano aos cofres da previdência, configura-se com a simples constituição do crédito tributário; o resultado naturalístico é sempre implícito. Aplica-se, então, o verbete da Súmula n° 24 do STF, pelo fato da contribuição previdenciária ser claramente um crime de natureza tributária.

Ressalta-se, ainda, que o crime ora analisado é doloso, o que implica em dizer que só se configura se restar comprovado o dolo, ou seja, a intenção do empresário de não repassar ou recolher o que fora arrecadado a título de contribuição à previdência social.

Assim, além da comprovação do não repasse à previdência, deve-se demonstrar a voluntariedade e a consciência na conduta de “deixar” de recolher ou repassar os valores ao sistema de custeio, sob pena de responsabilização objetiva, o que é inadmitido no nosso sistema de responsabilização penal.

Assim, é correto afirmar que a conduta configuradora do referido crime, além de exteriorizada, deve ser voluntária (domínio da mente sobre o corpo) e consciente (consciência da conduta praticada).

No mesmo sentido, o jurista Fábio Zambitte Ibrahim afirma que:

[…] para caracterização do crime não é suficiente a mera ausência de repasse. Não se deve confundir o ilícito administrativo-tributário da ausência de recolhimento com o crime, cuja identificação carece de componente subjetivo, representado pelo dolo do agente. Deve existir a consciência e vontade do agente em deixar de repassar os valores. (IBRAHIM, 2013, 481)

Portanto, a mera constatação de não recolhimento ou não repasse por parte da previdência é insuficiente para, por si só, configurar o crime de apropriação indébita previdenciária, já que a retenção indevida de valores deve ser ocasionada intencionalmente, ou seja, através do dolo do agente, em virtude da imprevisão de punição por resultado negligente (culposo).

Percebe-se que o crime de apropriação indébita previdenciária, na verdade, não é um crime de apropriação propriamente dito, uma vez que a lei não subordina a ocorrência do crime ao “animus rem sibi habendi” da conduta do sujeito ativo, como ocorre, por exemplo, no clássico crime de apropriação indébita (art. 168, CP).

Da redação do dispositivo se extrai, não obstante o nomem iuris, que não há estrita correspondência com a apropriação indébita do art. 168. O art. 168 pune apropriar-se; no delito em estudo, deixar de repassar. Naquele (art. 168) o agente inverte o ânimo da posse para agir como se fosse o dono do objeto apropriado; neste (art. 168-A), basta que deixe de transmitir ao órgão previdenciário o valor recolhido do contribuinte. (CUNHA, 2016, 327)

Logo, o crime de apropriação indébita previdenciária prescinde do específico dolo de apropriação (que consiste na vontade de se apropriar de coisa alheia sem a intenção de restituí-la) como elemento subjetivo do tipo, pois, como já dito, trata-se de crime omissivo que se configura com a simples violação do dever legal de agir, bastando para sua configuração, a voluntariedade e a consciência da conduta praticada, restando indiferente a presença ou não de fim especial de agir para a caracterização do delito em comento.

Nota-se, ainda, que o crime se encontra consumado no exato momento em que a pessoa deixa de efetuar o recolhimento que lhe é obrigado pela previdência social, que deve ocorrer sempre no 2º dia do mês seguinte ao da competência, sendo possível a sua prorrogação para o 1º dia útil subsequente, conforme dispõe o artigo 30, incs. I, “b” e III, da a Lei 8.212/91.

Por último, percebe-se que o crime em análise é crime unissubssistente,consistente na mera violação do dever legal de agir, o que inviabiliza, por absoluto, que se fale em fracionamento na execução do fato típico e, consequentemente, em punição da apropriação indébita previdenciária na forma tentada.


REFERÊNCIAS 

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 18. ed.. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361) volume único. 8 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2016.


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Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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