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A (in) constitucionalidade do delito do art. 305 do CTB

A contribuição da Coluna “Crime & Crítica” desta semana versa sobre a análise da (in) constitucionalidade do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro, qual seja, “a fuga do infrator do local do acidente”, tema que, inclusive, ganhou pauta de Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal em agosto de 2016 por meio do Recurso Extraordinário (RE) 971959, de relatoria do Ministro Luiz Fux.

De acordo com o tipo penal em questão, incorre no referido crime de trânsito, verbis:

Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

Entretanto, ao se analisar os verbos-núcleos e os elementos normativos do tipo penal: “afastar-ser (…) para fugir à responsabilidade penal ou civil”, percebe-se que o que legislador proíbe vai de encontro com o que é garantido pelo princípio constitucional do “nemo tenetur se detegere”, também conhecido como “princípio da não-autoincriminação”.

Segundo as lições de Wagner Marteleto, em dissertação (2011) e obra jurídica sobre o tema do princípio da não-autoincriminação, esta garantia relaciona-se com a tutela do acusado para resguardar a sua liberdade de comunicação de forma oposta aos métodos inquisitoriais que buscavam a confissão do acusado a qualquer custo.

De certo é que, conforme MARTELETO(2011), a garantia do “nemo tenetur” só se efetivou no final do século XVIII, a partir do sistema adversarial típico de países de tradição do common law, bem como a partir dos ganhos da filosofia iluminista que permeou a “civil law” de garantias indeléveis do acusado no processo penal e a obtenção de provas.

Ainda que no plano principiológico a garantia da não-autoincriminação tenha limites como bem sustentado por MARTELETO (2011), pois, há vários casos em que há algumas restrições legais que impõem formas de cooperação passiva “(obtida através de reconhecimentos pessoais, registros, inspeções e intervenções corporais coercitivas) e inconsciente (obtida com o emprego de meios enganosos)” por parte do acusado.

In casu, no que tange à forma de tipificação escolhida pelo art. 305 do CTB, não há se que falar em restrição à garantia em comento, pois, a leitura desta regra deve ser feita de forma sistemática com as demais regras do sistema nuclear do Código de Trânsito Brasileiro e com o restante do ordenamento Jurídico-Penal.

No que tange ao sistema dos crimes de trânsito, a garantia da não-autoincriminação modulou a alteração sofrida no art. 306 (vulgarmente conhecido como crime de “embriaguez ao volante”), ou seja, do delito de perigo consistente em “dirigir veículo automotor sob a influência de álcool ou substância que cause dependência”, quanto à necessidade de colaboração do acusado para a produção de prova da materialidade do crime.

Isso se deu com a redação dada pela Lei nº 12.971 de 2014, quando inseriu no art. 306 o § 2º, in verbis: “A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova”.

Esta alteração, de fato, salientou a desnecessidade do acusado ser obrigado a produzir prova contra si mesmo em caso de uma abordagem policial sob suspeita de embriaguez, ficando a produção da prova relegada ao papel do Estado e dos seus entes de investigação, em clara atenção ao princípio do nemo tenetur.

Entretanto, em 2014, mesmo mudando-se a sistemática dos crimes de trânsito, o art. 305 não foi revisado. E deveria ter sido. Pois é óbvia a violação ao referido princípio em comento quando se exige de um motorista que, após a prática de um acidente, permaneça no local do crime e contribua, assim, para com a sua própria responsabilização penal ou civil. É uma total incompatibilidade com o restante do sistema processual penal constitucional vigente.

O Código de Processo Penal Brasileiro, que mais parece uma “colcha de retalhos” de tantas adaptações para conseguir, de fato, se compatibilizar com as garantias penais e processuais penais trazidas com a Constituição de 1988, não prevê, na maioria de suas normas que tratam da investigação criminal ou mesmo do processo penal, uma participação ativa do acusado produzindo-se a prova contra si mesmo.

Percebe-se pela normativa que trata das provas que a confissão do acusado não pode ser utilizada como único meio de prova para a condenação: “Art. 197. O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”.

Assim, em atenção à cláusula da proporcionalidade, sustenta-se, enfim, que a garantia contra a autoincriminação é “uma pedra de toque do processo penal democrático, impedindo a coisificação do acusado e preservando sua autonomia ética” (MARTELETO, 2011).

Para corroborar o entendimento, percebe-se que a Jurisprudência pátria já vem alçando a declaração de inconstitucionalidade do art. 305 do CTB incidentalmente, como a 2ª Câmara Criminal do TJSC, Apelação Criminal n. 2009.026222-9, de Forquilhinha, Relatora: Desa. Salete Silva Sommariva:

APELAÇÃO CRIMINAL – ART. 305 DO CTB – FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE PARA ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OU PENAL – INCOMPATIBILIDADE COM A CF/88 – INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE – ARGÜIÇÃO AO ÓRGÃO ESPECIAL (CF/88, ART. 97; CPC, ART. 481 E RITJSC, ART. 161) – ACATAMENTO PELO ÓRGÃO MÁXIMO DA CORTE – INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA INCIDENTALMENTE – NECESSIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO JULGAMENTO NO ÓRGÃO FRACIONÁRIO – ABSOLVIÇÃO EM RAZÃO DE O FATO NÃO CARACTERIZAR CRIME (CPP, ART. 386, III).

E, em agosto de 2016, o Ministério Público do Rio Grande do Sul interpôs o recurso extraordinário (RE 971959) arguindo que o dispositivo constitucional não representa obstáculo à imputação do crime de fuga, pois os direitos à não autoincriminação e ao silêncio permaneciam incólumes. “Sustenta no RE, ainda, que a permanência do condutor no local em que ocorreu o acidente não se confunde com confissão de autoria ou reconhecimento de culpa, mas visa proteger a administração da justiça, já que é determinante para a apuração dos fatos e identificação dos envolvidos. Destaca, ainda, o dever de cidadania de prestar auxílio a quem porventura venha a ser injuriado por ocasião de um acidente”(STF, 2016).

Ao se manifestar pelo reconhecimento da repercussão geral do tema, o ministro Luiz Fux observou que a controvérsia semelhante foi submetida ao STF por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade 35, sob relatoria do ministro Marco Aurélio e que, além do TJ-RS, os Tribunais de Justiça de São Paulo, Minas Gerais e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região possuem decisões no sentido da inconstitucionalidade do dispositivo legal do CTB. Em suas palavras:

Nesse contexto, ressoa recomendável que esta Suprema Corte se pronuncie sobre o tema da constitucionalidade, ou não, do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, uma vez que a matéria transcende interesse das partes envolvidas, sendo relevante do ponto de vista social e jurídico, porquanto mister se faz debruçar sobre tema, no afã de traçar os limites dos direitos constitucionais ao silêncio e ao de não produzir prova contra si. (STF, 2016)

Diante do exposto, espera-se que a Corte Constitucional consagre a prevalência do princípio da não-incriminação em detrimento da regra do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro, tendo em vista, acima da Constituição Federal de 1988  na previsão do artigo 5º, inciso LXIII,  as regras de direitos humanos consagradas na Convenção de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) que vedam a violação do nemo tenetur.


REFERÊNCIAS

MARTELETO FILHO, Wagner. O princípio e a regra da não autoincriminação: os limites do Nemo Tenetur Se Detegere. 2011. 249 f. Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011.

Rafhaella Cardoso

Advogada (SP) e Professora

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