ArtigosCrime, Arte e Literatura

Arte, literatura e estudos criminais: Os Miseráveis

Não há como pensar em arte e literatura que envolvam estudos criminais sem trazer a boa memória da grande obra do francês Victor Hugo, Os Miseráveis, escrita há 155 anos e que ainda rende muita discussão no âmbito criminológico e em estudos que busquem seriedade e um olhar histórico sobre as mazelas humanas.

Em artigo escrito há algum tempo atrás intitulado Os miseráveis e os estudos criminais de Victor Hugo, nesse mesmo canal de estudos, trazemos um pouco da definição que tinha o autor em relação à formação da sociedade parisiense do período pós revolução, numa época de transição tanto de governo e ideologias; que se instaura definitivamente por toda Europa com o término da batalha de Waterloo e o  inicio da Restauração.

Foi esse o período retratado pelo autor em sua arte e que demonstra a célere disputa entre a crescente incorporação das fábricas e das indústrias e o pequeno produtor de tecidos e similares, o pequeno agricultor e camponeses que perdem seu espaço meio às grandes maquinarias e ao capital advindos dos burgos e das castas reconhecidamente privilegiadas por sua posição de nascença.

Nesse apelo por um naco a mais de pão ou de um serviço para ganhar o dia e salvar a família é que se engaja o escritor, num épico tilintar de taças cheias de vinho e copos vazios de esperança.

Há um capítulo, para aquele que deseja se aprofundar nos estudos da criminologia, onde é descrito o subsolo que pertence a todas as sociedades e que não há, no mundo, nenhum tipo ou modelo de vida social que se prive de um terceiro solo.

É lá, nesse inferno dantesco que se cria espectros e onde nascem os fantasmas, cerceados entre todos os lados por negras auroras e opaca claridade, que turva os olhos desde a nascença. O autor traz o sentido de catacumbas, onde “a ordem social tem seus mineiros da escuridão”, trazendo o aprofundamento da alma, das virtudes e das possibilidades humanas, todas são enterradas no mesmo lugar de nascença do homem descrédito desde os primordiais passos.

Para Hugo, é deveras significativo que as silhuetas que vagueiam pelas covas descritas como inferno, ou o subsolo, não se ocupam do progresso, nem pessoal ou universal, mas sim, de suas próprias saciedades, vagam como moribundos numa inconsciente torpeza que define os questionamentos sobre sua real humanidade.

Essa “caverna do mal” é o mais baixo escalão enclausurado meio às sociedades que determina a morte em vida, pois uma vez nascido em tal antro, mortus est, como se possibilidade de determinar seu próprio local de nascimentos as pessoas tivessem. Essa severa trilha de vida de um morto social ou desocupado mental leva aos mesmo lugares e caminhos que percorrem os viventes da boa sociedade; só que os demônios preferem a noite.

Crianças, mães, pais, soldados de antigas guerras fadados ao desprezo pelos vencedores, ex trabalhadores plantadores e cultivadores do seu próprio solo que viviam em escambo ou troca (mesmo que monetária) entre vizinhos de uma mesma comunidade, agora jazem putrefatos, segundo Hugo, nas masmorras do inferno social conhecido como subsolo, ou terceiro subsolo.

É interessante o olhar de Hugo para as galés e aos crescentes usos de desocupados sociais nesses serviços forçados. Adolescentes nascidos no subsolo e que se ocupam de vagar pela terra dos justos são colhidos pela justiça para o serviço nas galés, desde os 12 anos de idade. Pais que tentam de toda forma a subsistência, tendo uma vez negada a existência, buscam serviço nos portos e nos navios que chegavam entre uma batalha ou outra, recolhendo pedaços de corpos ou limpando porões, levando para casa doenças inimagináveis trazidas de outras paragens.

A crescente miséria nos lembra o mesmo cenário de 1929 no EUA, que nos remete a outros tantos pontos do Brasil, onde jazem crianças que nem sabiam que viviam, mortas por uma peste conhecida há anos, mas que torna a golpear o estômago e as forças dos infantes nos sertões esquecidos país afora.

Hugo traz ainda histórias em seu livro VII, Terceira Parte, intitulada Marius, de jovens baderneiros, ladrões e assassinos nascidos no inferno do subsolo, e ainda completa as sagas dos semi homens estruturando-os em um calabouço frio, almas gélidas que nada conhecem a não ser a fome e a dor.

Para ele, somente há uma saída dessa situação, apenas um remédio e somente a Restauração de nosso tempo poderia traze-lo, uma vez que as pessoas vivem mais informadas e estudadas, dessa forma, maior é a responsabilidade quando se está sob os holofotes do conhecimento. Assim, somente a LUZ poderia traze-los de volta do inferno, pois só essa energia vital que espanta morcegos e queima os “cogumelos disformes do subsolo” teria a força e a capacidade de desmontar o inferno criado.

“O que é preciso para essas larvas desaparecerem? Luz. Luz em abundância.” Não há, de fato, um só morcego que resista ao alvorecer. Para o autor, iluminar o subsolo da sociedade é a saída e fundamental remédio contra os  fantasmas que surgem e vivem sem a alma humana, ainda que humanos sejam. O conhecimento, a política de congregação e ensinamentos, as oportunidades dadas e criadas, são os fatores que Victor Hugo, em toda sua maestria, durante as 1509 páginas de sua vasta e emblemática obra, traz como preponderante para a iluminação social e para a promoção humana.

O autor de Os Miseráveis, Os trabalhadores do Mar e do famoso corcunda pode ter sido um dos mais influentes escritores e romancistas de nossa era, e com certeza pode ser definido como um grande estudioso das formações sociais e um excepcional criminologista.


REFERÊNCIAS

HUGO, Victor. Os Miseráveis, 1862. Tradução Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2015, livro VII, Terceira Parte: Marius, p. 759-769. arte arte arte arte arte

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo