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Abandonai toda a esperança vós que aqui entrais: Habeas Corpus 126.292


Por Fauzi Hassan Choukr


O julgamento do HC 126292, em 17/02/2016, pelo STF causou uma convulsão no mundo jurídico nacional vez que a Suprema Corte resolveu alterar seu entendimento sobre o que considera como transito em julgado da sentença penal condenatória para excluir do conceito o processamento dos recursos constitucionais (recurso extraordinário e especial) e, assim, possibilitar o início da execução da pena.

Ganhou espaço desta forma a linha interpretativa que “antecipava” a execução do julgado penal e deixava de exigir fundamentos cautelares para a prisão antes da sentença definitiva ainda que pendente a tramitação de recursos afetos ao STJ e ao STF.

As razões para alteração de entendimento no caso concreto são muitas e ao menos uma delas pode ser aqui exposta: a irracionalidade do sistema recursal brasileiro. A situação vem a ser exemplificada por julgamento amplamente noticiado pela mídia jurídica:

A ministra Rosa Weber saiu ontem da 1ª turma do STF e se dirigiu à 2ª turma para julgar feitos afetos à sua relatoria perante o colegiado. Logo de cara, já foi incumbida de tarefa hercúlea : manter o fôlego e ler o feito apregoado para julgamento, em tramitação na Corte desde 2002.: …. “Embargos de declaração no agravo regimental no agravo regimental no agravo regimental nos embargos de divergência nos embargos de declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no agravo de instrumento 394.065.”

Por sinal, tratava-se de um caso de homicídio em que se discutia a prescrição etária depois de se ter ingressado naquela Corte aventando uma vez mais alegadas nulidades que já haviam sido reportadas em Recurso Especial no STJ.

Assentemos de forma clara: Duplo grau de jurisdição não significa discussão eterna e tampouco significa a existência de uma miríade de impugnações que retirem a eficácia do julgado penal havido em obediência ao devido processo legal.

Sentindo essa ausência de funcionalidade, o Senador  Ricardo Ferraço encampou a ideia de reconfigurar os recursos constitucionais como ações rescisórias (PEC 15/2011) da forma então defendida pelo Min. Cesar Peluso. No Senado  foi a PEC relatada pelo Sen. Aloysio Nunes que, malgrado seu longo parecer, apresenta emenda substitutivas com potenciais problemas de incompatibilidade com o texto constitucional posto que simplesmente antecipa os efeitos da sentença condenatória penal antes de seu transito em julgado.

Ao mesmo tempo, os Senadores Requião, Gleise Hoffman, Álvaro Dias, e o próprio Aloysio Nunes encabeçam o projeto de lei do Senado 402 de 2015 com idêntica redação àquela do substitutivo da PEC 15/2011 e, portanto, incidindo nos mesmos problemas. Da mesma forma como o entendimento ora esposado pelo STF…

Desse cenário legislativo, é de se ponderar que a redação original transforma os recursos no STJ e STF em ações rescisórias e isto não fere o duplo grau de jurisdição, sendo compatível com a Constituição, com a Convenção Americana de Direitos Humanos e demais tratados internacionais que regulam o acesso à justiça, posto que preservado um já extenso caminho do duplo grau de jurisdição.

Ademais, não fere a presunção de inocência e prestigia a vocação dos Tribunais superiores citados para serem Cortes de atuação residual e de defesa dos mais altos valores jurídicos e não tribunais recursais vulgares, ao mesmo tempo em que valoriza os Tribunais estaduais e Regionais Federais e torna mais rápida a conclusão do processo e início de cumprimento de pena.

O processo legislativo ainda dormita e o STF, no caso que dá titulo ao presente texto, resolveu trilhar seu próprio caminho. E, nesse caminho, há a invocação do direito comparado, com resvalos no direito internacional.

Com efeito, é do Min. Teori, relator para o HC supramencionado, que “No tocante ao direito internacional, o ministro citou manifestação da ministra Ellen Gracie (aposentada) no julgamento do HC 85886, quando salientou que “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte”.

No caso concreto é de ser ponderado que, nos textos internacionais protetivos de direitos humanos, ao se falar em presunção de inocência, não se invoca o transito em julgado da sentença condenatória.

Com efeito, a Convenção Americana de Direitos do Homem aduz em seu Artigo 8º – Garantias judiciais que … 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. …

Da mesma maneira, a Convenção Europeia  de Direitos do Homem preconiza em seu Artigo 6.º (Direito a um processo equitativo) que … 2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada

Ambos os textos se satisfazem com a confirmação da culpa após o devido processo legal que pode, naquela base normativa, ser entendido como cumprido após o julgamento das questões de fato, reservando-se a impugnação extraordinária para situações extremas sem implicar na execução da sentença penal.

Não por outra razão o sistema interamericano de direito humanos dificilmente se debruçará com a relação entre presunção de inocência e trânsito em julgado mas fará, isso sim, extensa abordagem da relação daquela presunção com a própria natureza cautelar da prisão antes do marco decidido em cada país para considerar como encerrada a “comprovação legal da culpa”.[1]

E, invocações do direito comparado, especialmente o estadunidense, precisam ser feitas com cautela posto que lá a imensa maioria dos casos se resolve pelos mecanismos do plea bargaining, muitas vezes condicionado ao não exercício do recurso[2] e os demais ordenamentos normalmente empregados estão submetidos às bases convencionais acima mencionadas, cujo texto permite que se fale não em “execução provisória”, terminologia de resto descabida, mas, sim, em execução de pena após certo percurso do devido processo legal que, obediente ao duplo grau de jurisdição, se contenta com mecanismo mais enxuto e, potencialmente, mais racional[3].

A base da CR/88 é outra:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ….

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

E, para o bem ou para o mal (e mais para o mal como se vê na desestrutura recursal brasileira), condiciona-se a quebra da presunção da inocência apenas quando do transito em julgado da sentença penal.

Ao decidir como o fez no caso concreto, num HC individual e que, portanto, não geraria efeitos senão entre os interessados, tende-se a expandir essa decisão com “força de precedente” a todos os jurisdicionados, reverberando ainda que canhestramente os efeitos erga omnes que foram festejados como progressistas quando do julgamento do HC 82.959-7, o famoso caso que considerou inconstitucional a forma como a progressão de regime no caso dos crimes hediondos havia sido disciplinada na Lei 8072/90.

Naquele contexto, a Corte Suprema esboçou considerar uma “nova era” do controle de constitucionalidade[4], não sem sofrer críticas severas da doutrina[5], que apoiado em prestigioso academico, afirmava

“uma coisa é admitirem-se alterações do âmbito ou esfera da norma que ainda se podem considerar susceptíveis de serem abrangidas pelo programa normativo (Normprogramm), e outra coisa é legitimarem-se alterações constitucionais que se traduzem na existência de uma realidade constitucional inconstitucional, ou seja, alterações manifestamente incomportáveis pelo programa da norma constitucional”[6].

O STF escreveu um novo texto constitucional. Hoje, esse novo texto bem pode começar com

« Nel mezzo del cammin di nostra vita

mi ritrovai per una selva oscura,

ché la diritta via era smarrita. »


NOTAS

[1] Inter-American Commission On Human Rights. Rapporteurship on the Rights of Persons Deprived of Liberty. Informe sobre el uso de la prisión preventiva en las Américas / [Preparado por la Relatoría sobre los Derechos de las Personas Privadas de Libertad de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos]. p. ; cm. (OAS. Documentos oficiales ; OEA/Ser.L). 2013. ISBN 978-0-8270-6096-8

[2] Por todos, ver VOGLER, Richard. Justiça Consensual e Processo Penal. In: Processo Penal e Estado de Direito. (Coordenadores: CHOUKR, Fauzi Hassan e AMBOS, Kai). Tradução de Fauzi Hassan Choukr. Campinas: Edicamp, 2002

[3] FRISCHEISEN Luiza Cristina Fonseca; GARCIA, Mônica Nicida e GUSMAN, Fábio. Execução Provisória da Pena. Panorama nos ordenamentos nacional e estrangeiro.

[4] Mendes, Gilmar Ferreira. “O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional.” Revista de informação legislativa 162 (2004): 149-168.

[5] STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, nº 1.498, 8 ago. 2007. Disponível aqui. Acesso em 18/02/2014

[6] NERY JÚNIOR, Nelson. O senado federal e o controle concreto de constitucionalidade de leis e de atos normativos : separação de poderes, poder legislativo e interpretação da CF 52 X. Revista de informação legislativa, v. 47, n. 187, p. 193-200, jul./set. 2010 | Constituição de 1988 : o Brasil 20 anos depois, v.3

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Fauzi Hassan Choukr

Promotor de Justiça

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