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Acesso à Justiça ou acesso ao Judiciário?

Por Ruchester Marreiros Barbosa

Na coluna de hoje quero chamar a atenção de acesso à justiça não é acesso ao judiciário. O conceito é muito mais amplo do que essa leitura míope e literal. Nas lições de Kazuo Watanabe se trata de “acesso a uma ordem jurídica justa.”

Dentre os diversos feixes de atribuições decisórias[1] do Delegado de Polícia no âmbito da presidência da investigação criminal está o mister de manter seu sigilo, conforme art. 20 do Código de Processo Penal, na qual deve assegurar a eficácia da investigação, denominada de função utilitarista[2], ao mesmo tempo que exerce deve garantir, na mesma toada outra função denominada garantista, de cuja finalidade é de resguardar a intimidade, imagem e a honra do investigado, razão de existir do sigilo externo absoluto.

Mesmo diante da dificuldade muitas das vezes de conciliar as duas funções, o Delegado deve, acima de tudo, com independência funcional, observar os princípios gerais do Direito, a começar pelos tratados internacionais de Direitos Humanos e do Direito Constitucional, adotando-se um marco teórico para as suas decisões, compatíveis com o Estado Democrático de Direito, como a teoria do garantismo penal[3], pelo que nem mesmo a requisição do Ministério Público poderia fazer ultrapassar a seara anterior da análise dos princípios gerais, por apego ao formalismo, cujos axiomas estão baseados em princípios anteriores aos da norma penal e processual penal.

É com base neste sistema jurídico de marco teórico garantista, que buscamos nas lições de Luigi Ferrajoli[4], consagrar a máxima efetividade de seus axiomas, também no âmbito da investigação criminal.Dentre os elementos axiomáticos citados pelo festejado autor italiano, deverá ser efetivado pelo Delegado, face à pertinência deles na investigação criminal, sob sua presidência, dentre os 10 listados por ele, os seis primeiros e o último (A10), in verbis:

Denomino de garantista, cognitivo ou de legalidade estrita o sistema penalo SG, que inclui todos os termos de nossa série, trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível. Sua axiomatização resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, que expressarei, seguindo uma tradição escolástica, com outras tantas máximas latina: A1 Nulla poena sine crimine; A2 Nullum crimen sine lege; A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate; A4 Nulla Necessitas dine injuria; A5 Nulla injuria sine actione; A6 Nulla actio sine culpa; A7 Nulla culpa sine judicio; A8Nullum judicium sine accusatione; A9 Nulla accusatio sine probatione; A10 Nulla probatio sine defensione.

Para a efetivação de um dos elementos da democraticidade na investigação criminal destacamos o axioma nulla probatio sine defensione, que significa que a prova deve ser considerada nula se produzida sem defesa, ou utilizada sem o exercício do direito de defesa.

Segundo Paulo Rangel[5] o artigo 7.º, inciso XIV, da Lei nº. 8.906/94 não alcança o inquérito policial, pois “o caráter da inquisitoriedade veda qualquer intromissão do advogado no curso do inquérito”. Façamos a ressalva de que o advogado com procuração do investigado, o sigilo interno não lhe pode ser oposto.

Toda a celeuma sobre o acesso está justamente em conciliar o artigo 93, IX, segunda parte da CRFB, o artigo 20 do CPP, o artigo 133 da CRFB e o artigo 7.º, XIV do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

Para conciliar estas normas o STF, em 02/02/2009 editou a Súmula Vinculante nº 14, na qual garante o acesso ao investigado às peças já documentadas. Para nós o verbete da súmula deve ser aplicado para além do acesso aos elementos probatórios da investigação, pois acima de tudo, garante o direito de defesa na investigação criminal, em face da máxima efetividade ao emprego do “exercício do direito de defesa.”, contido na súmula, especificidade de um acesso à uma ordem jurídica justa.

Nas lições de Canotilho[6] (2003, p. 1224) entende-se como princípio da máxima efetividade:

a norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).

A jurisprudência do STJ[7] e do STF[8], ainda possuem uma visão míope do ordenamento e da súmula, limitando-se a dizer que o direito preconizado na súmula é de acesso aos autos, mas discordamos. A máxima efetividade garante que a súmula vá além do verbete, e alcance a verdade, constitucionalidade e a democraticidade.

Para nós a súmula não garante somente acesso, mas institui um dos princípios do quarteto principiológico estruturante do acesso à justiça no Brasil[9], mencionados por Paulo César Pinheiro Carneiro em sua pesquisa sobre acesso à justiça denominado de Operosidade, na qual pressupõe que “as pessoas, quaisquer que sejam elas, que participam direta ou indiretamente da atividade judicial ou extrajudicial, devem atuar da forma mais produtiva e laboriosa possível para assegurar o efetivo acesso à justiça.” (grifo nosso) Acesso à justiça não é acesso ao judiciário. É muito mais do que isso.

A máxima efetividade não abrange somente o dever do Delegado de garantir acesso aos elementos probatório, mas ao Estado como um todo, garantindo mecanismos à Defensoria Pública de ser notificada e poder atuar na defesa daqueles que não possuem condições de pagar com um advogado particular.

Cabe ao Estado e a OAB, através de convênios ou não, garantir instalações de gabinetes para advogados nas centrais de flagrantes. Trata-se de uma garantia a ser assegurada pelas instituições e não somente pelos seus membros no exercício de suas funções. Há necessidade de limites nas funções dos órgãos de investigação. Não porque há pessoas “boas” ou “más”, mas porque já alertou Montesquieu, “todo homem que possui poder é levado a dele abusar”[10]:

mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem, diria! Até a virtude precisa de limites. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder.

Por isso, cabe ao Estado garantir instrumentos ao exercício da defesa na investigação criminal. Sem estas categorias elementares à democraticidade do sistema político, que vão além de um sistema acusatório, estaremos diante de uma democracia disfarçada com práticas autoritárias, como já salientou Geraldo Prado alhures.

Não é por outro motivo que Rui Cunha Martins alerta quanto ao sistema penal ser reflexo do resultado político de um ordenamento, assumindo o processo “o microcosmo do Estado de Direito.

Neste sentido, entender a súmula como acesso somente a quem pode pagar por isso é  manter uma prática autoritária em pleno Estado Democrático de Direito. Torna o inquérito policial um microcosmo do Estado de exceção.

Flávia Piovesan[11] afirma categoricamente que a função do Estado deve adotar emergencialmente um novo paradigma jurídico, saindo “da hermética pirâmide (Kelsen) centrada no state approach à permeabilidade do trapézio entrado no Human rights approch.”

Por esta razão, deveríamos nos localizar, como Delegados sob o prisma do human centered approach, a lógica empregada por Norberto Bobbio[12], qual seja lente ex parte populi, que significa que o Estado serve e protege direitos

O que vem ocorrendo é o oposto, ou seja, a lógica de que sejam os cidadãos (investigados) quem devem proteger os direitos dos Estados os colocando numa posição de subserviência absoluta, lógica imanente da lente ex parte principe, na qual cabe ao investigado “correr atrás de seu prejuízo.”

Vivemos uma bipolaridade epistemológica, pois de um lado temos afirmativas diárias pelo Supremo de que não há devido processo legal, contraditório nem ampla defesa na investigação criminal, ou seja, um discurso que nega a incidência do art. 5º LIV da CRFB. Por outro lado, foi editada uma súmula vinculante 14, além de em determinadas ocasiões o STJ referendar precedente em sentido oposto à característica clássica, muitas vezes repetida pelo STF da unidicionalidade do inquérito policial e a conseqüente ausência de contraditória e ampla defesa, verbis:

ninguém será privado de liberdade sem processo legal e a todos são assegurados o contraditório e a ampla defesa –, é lícito admitir possa haver, no curso do inquérito, momentos de violência ou de coação ilegal. (….) Se, tecnicamente, inexiste processo, tal não haverá de constituir empeço a que se garantam direitos sensíveis – do ofendido, do indiciado, etc. (….) (HC-44.165, de 2007)”

Nesta toada, teremos democraticidade quando, ao final da investigação criminal, determinar o Delegado de Polícia, de ofício, a notificação do investigado para se pronunciar sobre os elementos probatórios colhidos no caderno investigatório, por advogado nomeado por aquele ou,  não possuindo, o Delegado deve notificar a Defensoria Pública.

Diante deste quadro, não restam dúvidas de que o papel da investigação criminal, conduzida pelo Delegado de Polícia transforma-se em uma função acima de simplesmente comprovar a materialidade e indícios de autoria. Antes de alcançar este fim, o principal papel do Delegado é garantir os meios democráticos, ou seja, buscar a democraticidade. Com isso, a construção de verdade ética. A verdade real é um mito.

Na democracia são os meios que justificam seus fins, portanto, autoria e materialidade rasgando a Constituição deve ser considerada prova ilícita, consequentemente, o elemento probatório que não vier revestido do manto protetor das garantias fundamentais deve ser declarado nulo e, se for o caso, os demais atos decorrentes dele, em razão da mesma lógica da teoria dos frutos da árvore envenenada.

Neste jaez, deverá fazer parte de uma futura teoria geral da investigação criminal, um sistema eficiente de nulidades dos atos de investigação criminal, como acabamos de preconizar, através do marco teórico de Ferrajoli, diante do axioma nulla probatio sine defensione. A conseqüência disso é a invalidação dos elementos probatórios colhidos na investigação criminal, não podendo ser aproveitados como justa causa para a ação penal, diante de flagrante violação a uma garantia fundamental que é o exercício do direito de defesa.

A investigação criminal possui como elemento principal a democraticidade, dispositivo em comum com a teoria geral do processo, não se justificando mais o alijamento desta categoria, das garantias fundamentais, presidido pela figura da Autoridade de Garantias e ou Delegado de Garantias e não mais “Delegado de Polícia”, pois não se trata mais de uma atividade “delegada” pelo Poder Judiciário, mas atividade “delegada” pela Constituição para garantir os meios democráticos de se buscar uma verdade eticamente construída. Insistimos! Esta é a finalidade da investigação criminal, garantia à uma ordem jurídica justa.

A atividade de “polícia” deve ser entendida como um patrulhamento sobre a contenção do poder advindo, principalmente do populismo penal. Neste sentido que se deve construir regras específicas para o desenvolvimento de um verdadeiro inquérito penal garantista[13].

O Estado hoje é Democrático de Direito, portanto, garantista. Garantismo não é modismo. Significa a emancipação de funções do Estado na busca constante de democraticidade como elemento central do exercício do poder.


[1] RDP,19/152/v89/2003, in JURIS SÍNTESE – DVD, Nov-Dez/2011: “a atuação da autoridade policial envolve considerável e relevante parcela de poder discricionário, daí a contingência de se investir o delegado de polícia de inegável feixe de atribuições decisórias em esfera administrativa. Se ao exercitar essa parcela de poder decisório, o delegado de polícia assim o faz de maneira fundamentada, neste passo atendendo ao comando constitucional, não pode ser responsabilizado criminalmente pelo teor e pelas razões de seu convencimento, que não hesitou em expor, estejam estas e aquele em substância corretos ou não.”

[2] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal, 5ª ed., São Paulo: RT, apud Aury Lopes Jr., p.  182

[3] FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, Tradutores Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002

[4] Idem, p. 74 e 75

[5] RANGEL, Paulo, Direito Processual Penal, 19ªed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 92

[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 7a edição, Coimbra: Almedina, p. 1224.

[7] Quinta Turma, HC 58.377-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 3/6/2008, citando precedentes do STF: HC 82.354-PR, DJ24/9/2004; HC 87.827/RJ, DJ 23/6/2006; do STJ: HC 88.104-RS, DJ 19/12/2007; HC 64.290-SC, DJ 6/8/2007, e MS 11.568-SP, DJ 21/5/2007.

[8] Rcl 12810 MC/BA – MEDIDA CAUTELAR NA RECLAMAÇÃO, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 28/10/2011, no mesmo sentido: informativo 548 do STF, Rcl 8.225, 01.06.2009,

[9] CARNEIRO, Paulo Cézar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 57

[10] MONTESQUIEU, O Espírito das Leis, apresentação, Renato Janine Ribeiro, trad. Cristina Muracho, 2ª ed., 2ª tir. 2000, São Paulo: Martins Fontes, 1996, Livro primeiro, capítulo IV, p. 166 e 167

[11] Controle de Convencionalidade: um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Uruguai, PIOVEZAN, Flávia et al., Coordenação Luiz Guilherme Marinoni, Valerio de Oliveira Mazzuoli. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 118

[12] BOBBIO, Norberto, Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1998, apud ob cit. p. 120

[13] Termo utilizado por TRINDADE, Daniel Messias da, O Garantismo Penal e a Atividade de Polícia Judiciária, Porto Alegre: Nuria Fabris, 2012, p. 20

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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