ArtigosCriminologia Penitenciária

As mudanças da vida no cárcere determinadas pelo PCC (Parte 2)


Por Diorgeres de Assis Victorio


Dando continuidade ao artigo da semana passada, lá estava eu escondido da visão do pessoal do G.O.E. e vendo a “escada humana” chegando ao topo da muralha. Um a um eles vão se escondendo, deitando pelo passadiço da muralha. Eu me perguntava, mas por que tudo aquilo estaria acontecendo, o que de errado estava ocorrendo com o sistema prisional paulista? Muitas perguntas vinham a minha mente e eu não tinha resposta a nenhuma delas, afinal de contas eu ainda não tinha nem completado um ano de serviço, estava ainda “engatinhando na cadeia”.

“O que nós verificamos portanto, é que há um problema insolúvel a nível de construção de presídios. Mas, se nós conseguíssemos resolver esse problema através de construção de presídios, neste ritmo e com este custo, ainda sim, eu acho que nós não resolveríamos o problema penitenciário; porque esse problema é realmente insolúvel, se nós pensarmos em soluções dentro do sistema penitenciário, tal como ele é concebido hoje.

Não se trata de uma questão de falta de recursos apenas; países desenvolvidos, com disponibilidade de recursos muito superiores às nossas, contando com um corpo de terapeutas ideal, e com um “staff” igualmente ideal, com recursos humanos e recursos materiais adequados, não resolveram o problema de recuperação do condenado. Esta é uma tragédia hoje conhecida nos Estados Unidos, na Suécie (sic), em todos os países enfim, onde não se pode acusar a deficiência pela flanco da falta de recursos.

Acontece que a pena de prisão, como tal, para ser executada em estabelecimentos prisionais, não funciona para o duplo objetivo que se reconhece formalmente para esse tipo de sanção. As metas formais da pena são punir e recuperar; esse binômio contém dois elementos que se repelem; que são antagônicos, que não são componíveis: punir e recuperar, ao mesmo tempo, é algo muito difícil de se conceber, tendo em vista o que decorre da colocação desse binômio numa realidade prisional.

Vamos pensar que seja admissível, como é, uma conciliação dos aspectos filosóficos e pragmáticos da disputa entre os retribucionistas e os utilitaristas, e que se reconheça na pena a sua dupla função, que seria punir porque pecou e recuperar para que não torne a pecar. O propósito desta síntese, se é possível filosoficamente na prática é muito difícil de atingir os resultados objetivados, dado que quando nós estamos numa realidade penitenciária verificamos, como observou recentemente num Relatório apresentado ao Governo Americano, o Professor David Vogell, que é Diretor Executivo da Illinois Law Enforcement Comission, dizendo que era forçoso reconhecer que o sistema prisional não é apto para recuperar ninguém; o que levou um outro grande penológo americano, Professor Norman Carlson, que o Diretor do Federal Bureau of Prisions, nos Estados Unidos, a dizer que nós teríamos que fazer uma escolha para dar à pena uma só das suas características: ou punir ou recuperar porque fazer as duas coisas juntas não seria possível.

Porque (sic) não é possível? Do ponto de vista filosófico ainda poderíamos tentar uma conciliação entre essas duas idéias e, aparentemente, no processo da educação isto funciona; mas nós pensamos erradamente que funciona no processo de educação, porque na realidade no processo da educação da criança, na educação do filho, na educação do jovem, nós não estamos tentando recuperar; nós estamos tentando formar. Então, punir para formar é diferente do que punir para reformar;isto é mais difícil ainda de se conseguir num sistema de prisão fechada.

Quando nós fazemos um corte sociológica, dessa sociedade estruturada muito peculiarmente que é a Sociedade Prisional, nós verificamos algumas evidências que durante muito tempo, não sei como, passaram desapercebidas – mas que são evidências solares.

Vamos colocar algumas delas: a primeira – o homem que entra num sistema social típico e peculiar, passa a fazer parte desse sistema. Seria muito pretensioso desejar que nós colocássemos um homem num sistema prisional fechado e quiséssemos que ele se orientasse por regras que não vigem naquele sistema. As normas daquela convivência, daquele tipo de sociedade, são normas peculiares; a vivência daquele sistema é mais uma vivência toda peculiar; as virtudes que nós estimamos não são as virtudes naquele sistema peculiar; e em duas palavras: o homem preso precisa aprender a não morrer para poder viver. As regras que ele vai aprender, em primeiro lugar, são as regras informais daquele tipo de sociedade na qual ele passa a conviver; as virtudes para ele, na convivência daquele meio, são as virtudes daquele meio e não as nossas; os nossos projetos serão muito bons para ele daqui a 20 anos, quando ele cumprir a pena. Mas hoje, ele precisa sobreviver; e, para sobreviver hoje, ele precisa aprender a lei daquele meio; e essa lei é a lei do cão; não é a lei que nós queremos que ele aprenda.

Quando nós colocamos os nossos objetivos formais, como a multiplicação de regras de conduta, uma multiplicação de regras de conduta, uma multiplicação de normas regulamentares, ele aprende rapidamente essas normas para que sofra o menos possível naquele meio; ele se torna extremamente obediente; ele se torna extremamente cooperador – dado que se ele não cooperar ele sofre consequências. Ele aprende de imediato como ele pode agir, não porque ele assimile essas normas interiormente, mas porque é útil para ele não praticar nenhuma falta regulamentar.

Isto transforma um homem, que nos pretendemos conhecer imediatamente, num homem que não se quer deixar conhecer. O que acontece então, nesse sistema é que nós envernizamos uma personalidade delinquente; por fora, nós lhe damos uma aparência de pessoa cooperadora, de pessoa que deseja a recuperação, de pessoa que está sendo entrosada no sistema penitenciário, como um bom sentido de recuperação; quando não é verdade: ele está vivendo um duplo papel; ele está vivendo o papel do homem que não quer ser castigado por infração de normas regulamentares e o de um homem que não quer ser castigado pelos seus companheiros, caso ele não venha a se comportar como eles desejam que ele se comporte naquele meio.

Neste caso quais são as regras mais importantes para ele, do ponto de vista da adesão da vontade? São aquelas regras do meio em que ele vive, e que o ajudarão a sobreviver, e não as normas nossas, as normais morais do grupo social nosso, com o qual ele não está convivendo no momento; portanto, ele pode adiar, para um futuro mais ou menos longínquo, o aprendizado dessas verdades que nós queremos que ele aprenda. Primeiro ele vai aprender as normas daquele meio; esse fenômeno se chama hoje, cientificamente, e, Penologia, Prisionização, o homem que se prisioniza.

Por outro lado, se punir é importante para o sistema penal, e a recuperação também é importante, desse conflito resulta uma verdade muito interessante de ser observada, do ponto de vista prático: nunca se ouviu dizer que um diretor de presídios tivesse sido punido, ou sindicado ou processado administrativamente, porque um preso, que saiu do presídio onde esse diretor exerce as suas funções, não tivesse saído recuperado e voltasse dois meses depois como reincidente. Nunca se cobrou desse diretor a falta de cumprimento do seu dever – que era ter recuperado esse preso; nunca houve clamor público por isso.

A meta recuperação não é exigida, quanto a um cumprimento cogente, pela opinião pública.

Mas se houver uma fuga de uma prisão, se um único homem fugir, há inquérito administrativo, há sindicância, há punições , há suspensões, há até demissões; porque a opinião publica se levanta contra a fuga; os jornais acusam com alarde uma fuga de presos – quanto mais sensacional, quanto mais elaborada a fuga, mais repercussão nos jornais e mais responsabilidades para os diretores.

Então, o que acontece é que os diretores acham muito mais importante não deixar fugir um preso do que recuperar um preso. A disciplina e a segurança passam a ser a grande meta de todos os presídios. Isto tem reflexos fundamentais no exame do problema: é que, para qualquer diretor de presídio, é muito mais importante a disciplina, a ordem e a obediência às normas dentro do presídio, do que qualquer consideração de ordem educativa. Assim, por exemplo um preso pratica uma falta e vai para o castigo; ele não é liberado para assistir às aulas e para ir à oficina trabalhar; mas o importante é de cumprir o castigo.” (PIMENTEL, 1953, p. 113 e ss.) – g.f. –

Começo a observar a chegada de muitos funcionários, pessoal de outras Unidades, curiosos, visitantes e parentes de presos começam a chegar e ali começam a improvisar um tipo de um acampamento. A imprensa em massa também estava ali para fazer aquele sensacionalismo barato que sempre fazem, e que “lavam a mente” da população em geral, somente incentivando cada vez mais a violência, ocasionando um clamor público pela elaboração de leis e inflando cada vez mais nossa legislação penal com aquela falsa bandeira que mais leis e leis mais severas resolvem qualquer problema de criminalidade. Quando que aprenderão que o Direito Penal é a ultima ratio e não a prima ratio?

Eis que um integrante do G.I.R. se levanta com muito cuidado para que ninguém o visse, era uma noite escura, sem lua e isso o ajudava nessa missão. O mesmo se esfregando pela mureta que dá segurança no passadiço foi se posicionando de cabeça para baixo em direção à parte de dentro da muralha, fiquei pensando e me perguntei, aonde ele se enganchou para fazer isso? Lembrei dos tempos do Exército onde fazíamos Rapel e Lepar, mas aquela técnica eu não conhecia ainda. E eles foram descendo dessa forma, mas todos passando por esse integrante, acho que assim era mais difícil de serem vistos a olho nu. Todos desceram e o último desceu também, estavam todos deitados em posição de rastejo baixo. Aguardam um pouco e um deles faz um sinal, um gesto de comando. Nesse momento me lembrei das instruções quando estava no Exército que nos diziam para obervarmos as regras quanto ao ruído, a luz e etc. Realmente eles estavam muito bem treinados e não estavam ali para brincadeira, afinal de contas, muitas vidas estavam em suas mãos. Com esse gesto foi dado início a uma fila indiana de rastejo em direção ao lado oposto onde havia o Raio (pavilhão) habitacional mais próximo à muralha, eles já tinham sem sombra de dúvidas estudado um croqui (mapa) da Unidade e traçado a missão deles antes de adentrarem a Unidade Prisional, que estava de posse dos presos amotinados e a comando do PCC. Foram rastejando por um percurso longo e de repente, sumiram no meio da escuridão e não pude mais acompanhar o que mais eles estavam executando.

Dou por encerrado o artigo dessa semana, dando continuidade na semana que vem. Abraços.


REFERÊNCIAS

PIMENTEL, Manoel Pedro. Visão do Sistema Penitenciário Paulista, à luz da Penologia Moderna. Revista Jurídica. Porto Alegre, 1953.

_Colunistas-Diorgeres

Diorgeres de Assis Victorio

Agente Penitenciário. Aluno do Curso Intensivo válido para o Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Penitenciarista. Pesquisador

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