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Diário de um agente penitenciário: o início de tudo

Por Diorgeres de Assis Victorio

“Nós havíamos pensado, ainda antes de assumir a Secretaria quando fazíamos trabalho no Departamento de Direito Penal, na Faculdade de Direito, na aplicação de métodos psicológicos modernos e técnicas modernas da psicologia operacional, baseados no “Behaviorismo”, e colocamos um grupo de psicólogas dentro do presídio, para fazer uma experiência de modificação de comportamento através das artes técnicas de Skinner: seis meses depois eu recebi o primeiro Relatório, inteiramente desanimador; que absolutamente não era possível modificar o homem preso para torná-lo servível para viver em liberdade. As psicólogas me disseram – nós podemos modificar o comportamento do preso, no seu ambiente de prisão, de sorte que se ele briga muito com o companheiro, ele deixa de brigar; se ele cospe no chão, pode deixar de cuspir; se come com a mão, deixa de comer com a mão: – isso nós podemos dar. Mas prepará-lo, preso, para ser um homem livre, nós não podemos; porque nós não temos condições de experienciá-lo na realidade do cotidiano, que é onde nós poderíamos, então, adaptá-lo. O professor Thompson cita uma frase que eu acho muito expressiva: – “ pretender treinar um homem preso para viver em liberdade, seria o mesmo que pretender treinar um corredor, para uma corrida de 3.000 metros, fazendo com que ele ficasse na cama durante 15 dias deitado, nós o soltaríamos para competir; e soltaríamos para correr os 3.000 metros. A comparação é mais ou menos essa.”[1]

Agradeço o convite por integrar esse seleto grupo de colaboradores. Ter a oportunidade de proporcionar aos leitores, mesmo que de uma forma diferente (o que preferi chamar de “Diário de um agente penitenciário”) experiências minhas nesses mais de 20 anos junto ao cárcere é por demais gratificante. Eis aí a missão, permitir que histórias nunca contadas ultrapassem as muralhas das prisões, contribuindo assim com o preenchimento da lacuna na formação pela ótica da transdisciplinaridade, tendo em vista que infelizmente as academias não deram a devida atenção ao sistema prisional, não possuindo em suas grades (via de regra) a disciplina de Direito Penitenciário e ciências correlatas, apesar de existir recomendação do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária).

É aquela velha e lamentável história de que o Direito Penitenciário é o “primo pobre do Direito Penal”.

Iniciei como agente de segurança penitenciária em 24/08/1994. Naquele dia compareci à Unidade Prisional (Regime Fechado) onde tinha escolhido trabalhar e no primeiro posto de serviço (Subportaria) me identifiquei dizendo que estava ali para começar a trabalhar. O agente deu uma risada e disse-me: “Bem-vindo” (de início percebi algo de errado naquela risada e só depois é que fui entender). Passei depois para outro setor (Portaria) e informei que estava me apresentando naquele local para trabalhar, que tinha passado no concurso, mais risadas se sucederam. Um funcionário revistou-me e perguntou-me se eu estava armado, respondi que não e assim pediu para acompanhá-lo, aí iniciou uma sequência quase interminável de passagens por grandes portões de ferros, revistas pessoais e de olhares atentos de todas as pessoas (me sentia como “um estranho no ninho”).

Fui apresentado ao “Diretor de Disciplina” (hoje Diretor do Centro de Segurança e Disciplina) e o mesmo perguntou-me se eu estava trabalhando “na rua” e eu disse que tinha vindo do Exército, que tinha sido sargento. De pronto disse-me que ali não era o Exército e perguntou-me se eu conhecia “cadeia”. Nisso respondi que no Exército às vezes tínhamos militares presos e contei como era o sistema de prisão no Exército. O mesmo já me advertiu dizendo que lá não era “Exército” e chamou um outro funcionário para levar-me para ser apresentado ao “chefe penal” (hoje Diretor do Núcleo de Segurança e Disciplina). Seguiu a “saga” de mais portões e mais uma revista foi feita em mim. Eis que agora eu estava adentrando a um posto denominado Gaiola da Administração e passamos por essa “gaiola” e adentramos a galeria (ou radial como alguns presos preferem denominar) ali comecei a sentir o frio da cadeia, frio esse provocado pelo concreto e ferragens da estrutura da arquitetura penitenciária.

Chegamos a um local chamado Setor Penal, nesse percurso verifiquei que tinham pessoas que andavam pelo centro dessa galeria e outras que andavam pelos cantos da mesma e eu me perguntava se eram presos que andavam pelos cantos, mas eu ficava em dúvida porque ninguém ali usava uniforme. Chegando ao local Setor Penal, disseram: “- Mais um “Gepê” (GP) (antes os agentes eram chamados de Guardas de Presídios, já tinha ocorrido à mudança de nome para agente de segurança penitenciária, mas a palavra GP e guarda ainda é utilizada até os dias atuais). Nisso uma pessoa disse-me se eu não queria comer um “marroquinho” (marroco) (pão) e disse-me que ali também tinha graxa (manteiga) e disse a uma outra pessoa: “ – Mosca” (bobo) oferece um “Moka” (café) ao guarda, nisso essa pessoa ofereceu-me (eu recusei porque tinha receio de ser algum trote, até porque não sabia nem o que eles estavam falando), aí uma outra  pessoa disse: “ – Ele não é “bocão” (guloso)”.O tal chefe penal disse para mim: “- Vamos dar um “pião” (andar sem destino específico) na cadeia”. Comecei a perceber que eu estava sendo vítima de algum trote ou os “guardas” já tinham absorvido as gírias da cadeia, os efeitos da prisionização[2].

Disse para darem-lhe um “Chico doce” (cassetete improvisado) e levou consigo, pensei comigo mesmo, ué, mas ele tem um objeto que presumo que é para se defender e eu não terei nada. Seguimos caminhando. Mostrou-me um tipo de uma janela de vidro dizendo-me que aqueles vidros eram inquebráveis e etc., dizendo ainda que ali era o Raio (pavilhão) de seguros. Vi que haviam muitos presos soltos, era horário de banho de Sol e estava tendo uma partida de futebol, afinal de contas, futebol na cadeia é coisa sagrada. Seguimos no tal “pião” e paramos em frente de um outro portão e disse-me que ali era a “gaiola 1” que permitia o acesso ao Raio 1. Passamos pelo interior da tal gaiola e seguimos pela galeria da cadeia e paramos em frente de outro portão e disse-me: – “Aqui é a “Casa da Banha” (cozinha) e você hoje trabalhará aqui”, nisso percebi que eu estava mais ou menos na metade do corredor e que na verdade ele não tinha mostrado-me quase nada da cadeia, mas eu não podia falar nada porque estava chegando hoje ali, era guarda novo e se ele não queria mostrar-me mais nada, algum motivo sem sombra de dúvidas ele tinha para fazer isso. Nisso ele bateu com uma corrente que estava soldada no portão e apareceu uma pessoa e abriu o portão e o chefe disse: “-Ele vai trabalhar aqui hoje” e foi embora.

Adentrei ao local e vi que nesse local os presos estavam uniformizados, mas também estavam de posse de facas utilizadas por açougueiros. Nisso pediram para eu ficar no posto de serviço do portão que dá acesso a tal cozinha da Unidade e advertiram-me dizendo que se eu escutasse um apito ou sirene era para eu passar a corrente no portão e trancá-lo. Aí fiquei ali naquele portão e vi que pessoas desciam a tal galeria e olhavam para onde eu estava. Depois apareceu uma pessoa que eu não sabia se era funcionário ou preso e disse-me que eu tinha “abraçado” (estava trabalhando naquele local) a cozinha (eu somente balançava a cabeça, pois não sabia com quem estava falando), nisso veio uma pessoa e pediu-me o tal chavão do portão para fechar um outro portão e eu não dei, porque era chave daquele portão e não sabia se ele era preso ou funcionário e se por ventura nesse ínterim em que ele levasse a chave eu precisasse abrir o portão porque algum preso se cortou com a faca ou algo assim?

Eu disse tudo isso ao mesmo e ele disse-me que então eu deixasse o “portão na manha” (aberto) e eu disse que não podia porque disseram-me que era para eu deixar ele trancado e que em caso de urgência inclusive era para passar a corrente e disse isso a essa pessoa. Nisso ele foi embora e vieram outras pessoas e o tal “chefe penal” e o mesmo pediu-me a chave e eu dei e fui informar aos funcionários da cozinha que o portão estava aberto porque pegaram o tal chavão. Eles deram risada. Eu não entendia nada, porque falaram para eu mantê-lo fechado e se fosse o caso “metesse a corrente com cadeado e agora pedem a chave, levam embora a mesma e deixam o portão aberto. Quando eu estava dentro do setor de cozinha veio um preso com um pote de plástico e disse é o “recortado” (comida que sobra da cozinha e que o preso quer levar para sua cela), o guarda disse-me “é a cara do ladrão” (parte, porção que lhe cabia) pediu para eu revistar a comida dando-me talheres e disse-me agora você o acompanha até o portão de saída, mas “dá um pano” nele (revista ele).

Passou algum tempo e voltaram a entregar-me o tal “chavão” e voltei ao tal portão. Algum tempo depois veio uma pessoa e disse-me “mestrão” to precisando é “ligar” (chamar) o “mano do barraco”. Achei que ele era preso porque o mesmo disse “mano do barraco” porque se ele dissesse-me somente que queria dar um salve em uma pessoa lá dentro eu ia achar que poderia ser um guarda porque os guardas falavam muitas gírias, na verdade o pouco de contato que tive com funcionários e presos, percebi que os funcionários falavam mais gírias de que os presos talvez porque como diz um velho ditado na cadeia “quem fala demais dá bom dia para cavalo” e durante todos esses anos percebi que os presos não eram de conversar muito com funcionários, talvez porque podiam pensar que eles seriam “caguetas” (alcaguete, delator, informante). Posteriormente fui designado para trabalhar no Raio I – Raio de Seguros e “Jacks” (estupradores), mas essa outra história fica para um outro dia.

Este foi meu primeiro dia como agente penitenciário.

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[1] PIMENTEL, Manoel Pedro. Visão do Sistema Penitenciário Paulista, à luz da penologia moderna. 1953.

[2] É o processo pelo qual o indivíduo vai assimilando dia a dia os influxos deletérios da prisão e, por via de conseqüência, vai se potencializando-o para o crime, acomodando-o à vida carcerária e distanciando-se de valores e padrões sociais normais. Pouco a pouco ele vai se integrando aos costumes, valores e normas comuns aos detentos. Ao mesmo tempo vai se estigmatizando e se criminalizando. A prisonização (sic) e a criminalização levam o indivíduo à rejeição social e a se tornar criminoso de carreira. A prisonização produz  carência afetiva e efeito castrador na vida psíquica e social do preso, além de ânsia de fuga e percepção, deturpação de si e de outros. Pela Prisonização o indívíduo perde a iniciativa para o bem e desenvolve a iniciativa para o mal. (JUNIOR, João Farias. Manual de Criminologia. Curitiba: Juruá, 1996, p. 310)

_Colunistas-Diorgeres

Diorgeres de Assis Victorio

Agente Penitenciário. Aluno do Curso Intensivo válido para o Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Penitenciarista. Pesquisador

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