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Investigação criminal, obstrução da justiça e bloqueio do WhatsApp

Por Marcelo Crespo

Desde aproximadamente as 16h00min de ontem teve início na Internet um enorme burburinho sobre uma decisão judicial que teria determinado o bloqueio do WhatsApp em todo o país, por 48h a contar-se da meia noite do dia 17, quinta-feira, portanto, desde o início do dia de hoje. Naquele momento, não se tinha a certeza de que haveria o bloqueio e, tampouco, seus motivos.

Passadas algumas horas e com a ampla disseminação da notícia, algumas poucas informações permitiram entender, ainda que minimamente, o que estava acontecendo. Inclusive o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo divulgou uma nota esclarecendo parcialmente o ocorrido, nos seguintes termos:

“A 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo determinou a operadoras de telefonia o bloqueio do aplicativo WhatsApp, pelo período de 48 horas. O prazo passa a contar a partir da 0 hora seguinte ao recebimento do ofício da Justiça.

 A decisão foi proferida em um procedimento criminal, que corre em segredo de justiça. Isso porque o WhatsApp não atendeu a uma determinação judicial de 23 de julho de 2015. Em 7 de agosto de 2015, a empresa foi novamente notificada, sendo fixada multa em caso de não cumprimento.

Como, ainda assim, a empresa não atendeu à determinação judicial, o Ministério Público requereu o bloqueio dos serviços pelo prazo de 48 horas, com base na lei do Marco Civil da internet, o que foi deferido pela juíza Sandra Regina Nostre Marques.”

Estava, então, informado que de fato havia ordem judicial para o bloqueio do aplicativo e, ainda, as razões que levaram a esta decisão. Durante o dia de hoje fomos surpreendidos com a notícia, também veiculada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo informando que:

“Decisão de hoje (17) do desembargador Xavier de Souza, da 11ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, determinou o restabelecimento do aplicativo WhatsApp. Serão expedidos ofícios aos provedores com a determinação.

O magistrado destacou que “em face dos princípios constitucionais, não se mostra razoável que milhões de usuários sejam afetados em decorrência da inércia da empresa” em fornecer informações à Justiça. Destacou, ainda, que “é possível, sempre respeitada a convicção da autoridade apontada como coatora, a elevação do valor da multa a patamar suficiente para inibir eventual resistência da impetrante”.

O julgamento do mérito do recurso será analisado pela 11ª Câmara Criminal.”

Então já é possível argumentar sobre a tecnicidade e legalidade dos fatos ora narrados sem adentrar o campo do “achismo”.

Em primeiro lugar é fundamental esclarecer que a lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) não autoriza em qualquer dos seus artigos, que um aplicativo tenha seu funcionamento suspenso ou turbado. De fato, nota-se que algumas pessoas desavisadas tentam forçar a interpretação dos arts. 10 a 12 para jusitificar o injustificável. Referidos artigos tratam “Da Proteção aos Registros, aos Dados Pessoais e às Comunicações Privadas “ e estabelecem, em suma que:

1) A “disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas” (art. 10) sendo que isso “somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial” (§2º do art. 10);

2) “Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros” (art. 11) e que “mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil” (§2º do art. 11);

3) Que, “sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa: I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas; II – multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção; III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou IV – proibição de exercício  das  atividades  que  envolvam os atos previstos no art. 11.” (art. 12, seus incisos e parágrafo único).

4) Parágrafo único.  Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.

Em resumo, o Marco Civil traz disposições sobre o tratamento e processamento de dados pessoais pelos provedores de acesso e aplicações na Internet, mas em momento algum autoriza a suspensão do funcionamento do aplicativo, sendo a interpretação neste sentido verdadeira “gambiarra” para coerção da empresa. Note-se que o Marco Civil assim dispõe no intuito de que as sanções sejam aplicadas para os casos de descumprimento das normas por ele estabelecidas. O que a lei 12.965 autoriza é uma sanção econômica pela impossibilidade de que os aplictivos – em especial o WhatsApp – deixem de coletar, armazenar ou tratar dados e não impedir que as pessoas troquem dados e informações. Seria algo como proibir que o WhatsApp admitisse que novas contas fossem criadas, mas jamais interferir naquelas que operavam normalmente.

A interpretação e a justificativa de que a empresa deixou de atender a ordem judicial é rasa, revanchista, tecnicamente inadequada e, acima de tudo, uma verdadeira expressão de abuso de direito pelo Judiciário.

Evidentemente há que se respeitar as decisões judiciais e colaborar com  Administração da Justiça, já que a ninguém é autorizado escusar-se de cumprir a lei e as decisões do Judiciário. No entanto, interpretar o Marco Civil da Internet desta forma para suspender o aplicativo, isto sim é criminoso. Mostra o despreparo dos players envolvidos na tentativa de solucação dos problemas e o analfabetismo digital que ainda impera mesmo entre pessoas com formação jurídica.

É bem verdade que o crime de desobediência que se poderia imputar àqueles que não cumprem a decisão judicial tem pena diminuta, sendo considerado de menor potencial ofensivo, nos seguinte termos:

Desobediência

Art. 330. Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

Se o crime existente se mostra um verdadeiro desprestigio para o combate à obstrução da justiça, que se repense os termos do crime e sua pena cominada. Que o Direito se adapte às novas tecnologias e desafios, mas sem “gambiarras” interpretativas.

Um caminho que parece ser mais viável para a solução de casos assim é a busca pela realização de acordos de cooperação internacional. E já há mecanismos assim, tanto que foi por meio de instrumento deste que se obteve acesso a dados da conta bancária de Eduardo Cunha na Suiça.

Esse terrível episódio, baseado em decisão absolutamente desproporcional nos deixa escancarado que estamos fragilizados quando pensamos na Internet brasileira já que um juiz de primeira instância pode afetar negativamente milhões de pessoas, com reflexos inclusive na Argentina e Chile, para buscar efetividade em um único processo criminal.

Enquanto os players jurídicos olharem para a Internet e para a tecnologia como vilões, deixando de pensar na coletividade para tentar resolver questões pontuais, vivenciaremos problemas assim. É preciso muita reflexão neste momento, sendo fundamental que os tribunais superiores não admitam soluções como as aqui debatidas (embora para o bem de todos o serviço tenha sido reativado pela derrubada da liminar).

A questão posta em discussão é longa e merece artigo científico mais extenso.

Mas são estas as linhas gerais para o debate.

_Colunistas-MarceloCrespo

Marcelo Crespo

Advogado (SP) e Professor

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