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Mandado de condução coercitiva e a Constituição da República


Por Francisco Sannini Neto


O mundo jurídico está em alvoroço desde que foi decretado pelo juiz Sérgio Moro um mandado de condução coercitiva em prejuízo do ex-presidente Lula. Nesse texto, vale dizer, não temos a intenção de abordar qualquer aspecto político do caso, nos restringindo a uma análise jurídica acerca do famigerado instituto processual penal.

Primeiramente, devemos consignar que trata-se de um “mandado” de condução coercitiva e não “mandato” (às vezes a mídia se equivoca em termos técnicos). Sendo assim, estamos diante de uma ordem emanada de autoridade com atribuição legal para tanto. E quem pode decretar essa ordem? Aí surge a primeira dúvida em relação ao tema, tratado pelo Código de Processo Penal nos artigos 201, §1°, 218, 260 e 278, dependendo do sujeito passivo da medida.

Antes de nos aprofundarmos no estudo desse instituto, devemos lembrar que o Código de Processo Penal é de 1941. Portanto, suas disposições precisam passar poruma filtragem à luz da Constituição da República de 1988.

Pois bem. O artigo 201, §1°, trata da condução coercitiva da vítima, estabelecendo o seguinte: “Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade”. Nota-se que o legislador não cita qual seria essa autoridade, se policial ou apenas a judicial.

O artigo 218, por sua vez, é mais claro ao dispor que “Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.” Percebe-se, aqui, que o dispositivo trata da condução coercitiva de testemunha.

Já no artigo 260, do CPP, o sujeito passivo da medida é o acusado e, justamente por isso, o tema causa maior repercussão, especialmente se analisado à luz do princípio da não autoincriminação (nemotenetur se detegere),  previsto tanto na Constituição da República quanto no Pacto de São José da Costa Rica.

Nos termos do dispositivo em questão, “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Aqui, uma vez mais, o legislador não especifica a autoridade com atribuição legal para determinar a condução, muito embora se utilize do adjetivo acusado, característico da fase processual.

Do exposto, não resta dúvida de que a condução coercitiva pode ser decretada pelo juiz, que é o sujeito ativo da medida na fase processual. Contudo, nada impede que o delegado de polícia, através de uma analogia, se valha do mesmo procedimento na fase de investigação criminal.

Sobre o tema, aliás, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que a própria Constituição asseguraria, em seu art. 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. O art. 6º, II a VI, do CPP, por sua vez, estabeleceria as providências a serem tomadas pelas autoridades referidas quando tivessem conhecimento da ocorrência de um delito. Assim, asseverou-se ser possível à polícia, autonomamente, buscar a elucidação de crime, sobretudo nas circunstâncias descritas. Enfatizou-se, ainda, que os agentes policiais, sob o comando de autoridade competente (CPP, art. 4º), possuiriam legitimidade para tomar todas as providências necessárias, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. Observou-se, por fim, que seria desnecessária a invocação da teoria dos poderes implícitos (STF, HC 107.644, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 06/09/2011. No mesmo sentido: STJ, RHC 25.475, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 10/06/2014).

Destaque-se, todavia, que boa parte da doutrina critica essa possibilidade, defendendo que a medida estaria sujeito à cláusula de reserva de jurisdição. Isto, pois, a condução coercitiva implicaria na restrição da liberdade de locomoção do conduzido. Da mesma forma, os defensores dessa tese argumentam que o Código de Processo Penal não faz menção ao delegado de polícia, sendo que a autoridade citada no dispositivo seria apenas a judicial, inclusive porque o texto legal se vale do termo acusado, que é exclusivo da fase processual.

Com a devida vênia, não é esse o nosso entendimento. Primeiramente, devemos consignar que o legislador se equivoca diversas vezes ao logo do Código de Processo Penal, fazendo menção a “processo”, quando deveria dizer “procedimento” ou utilizando o adjetivo “indiciado”, quando o apropriado seria “acusado”.

Para ilustrar nossas afirmações, nos socorremos o artigo 134, do CPP, que estabelece o seguinte:  “A hipoteca legal sobre os imóveis do indiciado poderá ser requerida pelo ofendido em qualquer fase do processo, desde que haja certeza da infração e indícios suficientes da autoria”. Como é cediço, a hipoteca legal é uma medida assecuratória que só pode ser decretada durante o processo. Conclui-se, destarte, que o legislador se equivocou ao fazer menção ao indiciado, quando o correto seria acusado.

Superada essa questão da terminologia utilizada no texto legal e que não merece maiores divagações, passemos ao argumento de que o delegado de polícia não poderia decretar a condução coercitiva em virtude de essa medida acarretar uma restrição à liberdade do conduzido.

Nesse ponto,não podemos olvidar as semelhanças existentes entre as fases que compõem a persecução penal, senão vejamos: a-) o processo é instruído pelo juiz e a investigação criminal é instruída pelo delegado de polícia; b-) o juiz deve ser imparcial, sem interesse na causa discutida, assim como o delegado de polícia; c-) em observância ao sistema acusatório, o juiz deve se manter equidistante das partes, assim como o delegado de polícia no inquérito policial, não sendo, esta autoridade, parte em eventual processo posterior, tendo o dever de promover a investigação com a observância das regras legais e proporcionando a “paridade de armas” entre os envolvidos, tal qual o juiz durante o processo; d-) a autoridade judicial deve conduzir a instrução processual de modo a chegar o mais próximo possível da verdade real dos fatos, sendo que o a autoridade policial deve agir da mesma forma, buscando a produção de provas e informações que esclareçam os fatos e promovam a justiça, sem se preocupar se os elementos coligidos irão prejudicar o investigado ou beneficiá-lo.

Percebe-se, pois, que durante a investigação preliminar o delegado de polícia deve atuar como uma espécie de longa manus do Poder Judiciário, preparando o caso penal para uma eventual persecução penal em juízo. De modo ilustrativo, se uma pirâmide é utilizada comumente para exemplificar a fase processual, com a figura do Juiz no seu topo, uma outra pirâmide, de cabeça para baixo, serviria para representar a fase de investigação. Teríamos, portanto, um verdadeiro losango traduzindo a persecução penal em nosso ordenamento jurídico, sendo uma das extremidades composta pelo juiz e a outra pelo delegado de polícia.

Não por acaso, o nosso ordenamento jurídico conferiu ao delegado de polícia atribuições que, em regra, são exclusivas da autoridade judicial. É o que ocorre no artigo 322, do CPP, que permite que a autoridade policial decrete uma medida cautelar liberatória em benefício do preso em flagrante (liberdade provisória mediante fiança). Nesse contexto, pode-se argumentar que a medida em questão não envolve restrição à liberdade de locomoção do imputado e, assim, não seria inconstitucional.

Entretanto, o sistema jurídico também conferiu ao delegado de polícia a atribuição de decretar a prisão de pessoas surpreendidas em flagrante delito, sendo estas recolhidas ao cárcere independentemente de análise judicial, que só acontecerá 24 horas após a efetivação desta medida pré-cautelar.

Assim, quando decreta a prisão em flagrante de uma pessoa, o delegado de polícia exerce uma função judicial atípica, fazendo às vezes do magistrado, por expressa previsão legal, o que é absolutamente possível e constitucional, especialmente se considerarmos que o auto de prisão em flagrante será analisado posteriormente pelo juiz competente, nos termos do artigo 310, do CPP. Ressalvamos, todavia, que, nos termos do artigo 5°, inciso LXI, da Constituição da República, é imprescindível que a decretação dessa modalidade prisional seja escrita (ou, como preferimos, formalizada) e fundamentada.

Diante desse cenário, só podemos concordar com a decisão do STF no HC 107.644/SP, citado alhures, que entendeu possível a condução de pessoas, de maneira autônoma, pela polícia judiciária, sempre que necessário à perfeita apuração de infrações penais, ressalvados, é claro, os direitos constitucionais do conduzido. Ora, se o delegado de polícia pode decretar a prisão em flagrante de uma pessoa, e tem essa atribuição legal justamente com a finalidade resguardar o processo e o conjunto probatório, muito mais justificável é o decreto de condução coercitiva de alguém para a realização de alguma diligência que possa auxiliar no esclarecimento dos fatos e, consequentemente, contribuir com a promoção da justiça.

Defender o contrário seria uma ofensa às prerrogativas constitucionalmente conferidas às polícias judiciárias, o que colocaria em risco a concretização da justiça e o Estado Democrático de Direito. Afinal, a grande maioria das atividades policiais afetam, em maior ou menor grau, a liberdade individual das pessoas, o que é justificado pelo direito à segurança e pelo poder geral de polícia. É o que ocorre, por exemplo, em buscas pessoais realizadas na via pública, onde nunca se questionou a limitação aos direitos fundamentais dos revistados.

Estabelecidas as premissas sobre a autoridade com atribuição para decretação de mandado de condução coercitiva, é mister uma abordagem sobre outros aspectos desse instituto.

Desse modo, consignamos que o mandado de condução coercitiva tem natureza jurídica de medida cautelar pessoal restritiva da liberdade, podendo ser decretado, conforme já adiantamos, em prejuízo da vítima (nos crimes de ação penal pública), de testemunhas e até do investigado/acusado.

Vale ressaltar que estamos diante de uma medida cautelar de natureza geral, não especificada no rol do artigo 319, do Código de Processo Penal, que trata do assunto. Não podemos incidir no erro de limitar as medidas cautelares aquelas constantes no referido dispositivo. Por óbvio, em se tratando de uma medida restritiva de direito, sua adoção fica vinculada à previsão legal (tipicidade), afastando-se, destarte, a invocação de um poder geral de cautela.

É o que ocorre, por exemplo, com as medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha, ou com a possibilidade de suspensão preventiva da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor, nos termos do artigo 294, do Código de Trânsito Brasileiro. No Código de Processo Penal também encontramos outras medidas cautelares fora do artigo 319, como as medidas assecuratórias e a própria condução coercitiva.

Devemos frisar que esta famigerada medida cautelar pessoal possui uma dupla vertente, ora exigindo-se uma postura “ativa” do conduzido, ora uma postura “passiva”. Essa distinção ganha relevo quando tratamos da condução coercitiva de investigado/acusado.

Com relação às vítimas e testemunhas, o fundamento da medida é a busca pela verdade, essencial para a correta tutela jurisdicional, mesmo quando decretada a condução coercitiva na fase de investigação. Destaque-se que de tais sujeitos processuais poderão ser exigidas posturas “ativas” (prestar depoimento ou declaração, realizar reconhecimento pessoal, participar de reconstituição de crime etc.), sendo que no caso de testemunha, a recusa em prestar depoimento pode caracterizar, em tese, o crime de falso testemunho, previsto no artigo 342, do Código Penal (negando ou calando a verdade).

O grande problema surge na condução coercitiva de investigado/acusado, onde só se poderá exigir posturas “passivas”, afinal, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere). Assim, o investigado/acusado não pode, entre outras coisas, ser compelido a dar sua versão sobre os fatos apurados, participar de reconstituição de crime, nem submeter-se ao exame do etilômetro ou de sangue. Ressalte-se, todavia, que em nosso entendimento o princípio da não autoincriminação restringe-se a posturas “ativas”. Isso significa que o investigado/acusado pode ser conduzido coercitivamente para a formalização de procedimentos de natureza “passiva”, tais como indiciamento e reconhecimento pessoal.

No que se refere ao indiciamento do investigado, devemos ter em mente que esse instituto é constituído por três peças de polícia judiciária, qual seja, auto de qualificação e interrogatório, histórico de vida pregressa e boletim de identificação criminal, que pode ou não vir acompanhado da identificação pelo processo datiloscópico.

Assim, conclui-se que é perfeitamente possível a condução coercitiva de investigado para fins de indiciamento, uma vez que, como visto, este ato de polícia judiciária não se resume ao seu interrogatório. Nota-se que o indiciado poderá fazer uso do seu direito ao silêncio e não produzir provas contra si mesmo durante sua oitiva (nemo tenetur se detegere), mas não poderá ocultar a sua qualificação. Aliás, essa conduta pode, inclusive, caracterizar a contravenção penal prevista no artigo 68, da Lei de Contravenções Penais (recusa de dados sobre a própria identidade ou qualificação).

Demais disso, o indiciamento constitui uma importante medida de natureza investigativa, criando um verdadeiro RG criminal para o indiciado, sendo tais informações essenciais para futuras investigações e até para subsidiar decisões judiciais acerca dos maus antecedentes, como já deixou transparecer o STF no julgamento dos habeas corpus 94.620 e 94.680, onde a maioria dos ministros, ao rever uma decisão com repercussão geral (RE 591.054), se manifestaram no sentido de que inquéritos policiais e ações penais em andamento podem ser considerados no cálculo da dosimetria da pena.

E não há que se falar que a qualificação do investigado poderia ser obtida por outros meios, evitando-se, assim, a sua condução coercitiva. Isto, pois, em muitas situações, mesmo com diversas fontes de pesquisa, não é possível a sua correta identificação, especialmente em casos que envolvam menores de idade. Nesse diapasão, a adoção dessa medida cautelar pessoal é essencial para assegurar o correto exercício do jus puniendi estatal, evitando-se possíveis equívocos e a adoção de medidas cautelares mais incisivas, como a prisão temporária e até a prisão preventiva para averiguação, prevista no artigo 313, parágrafo único, do CPP (ver SANNINI NETO, 2014).

Sob um aspecto prático-investigativo, a condução coercitiva de investigados mostra-se extremamente útil durante operações policiais para o cumprimento de mandados de busca e apreensão em residências distintas, evitando a destruição de provas após o encerramento das diligências e impedindo o contato entre os suspeitos, viabilizando, outrossim, a realização de interrogatórios simultâneos.

Por fim, lembramos que o interrogatório é, sobretudo, um meio de defesa do indiciado/acusado, sendo que o direito ao silêncio constitui apenas uma de suas opções. Nada impede, portanto, que após a sua condução coercitiva, ele opte, até como uma estratégia de defesa, por dar a sua versão sobre os fatos, seja repelindo as imputações que lhes são feitas, seja indicando outras fontes de prova.

Em conclusão, podemos afirmar que a condução coercitiva é uma medida cautelar pessoal restritiva da liberdade, que pode ser adotada tanto na fase preliminar de investigação (através de decisão fundamentada do delegado de polícia e a consequente expedição do mandado) como na fase processual, por ordem fundamentada da autoridade judiciária competente, podendo figurar como sujeito passivo a vítima (nos crimes de ação penal pública), a testemunha e o investigado/acusado (observados os seus direitos constitucionais, especialmente o de permanecer em silêncio e não produzir provas contra si mesmo).


REFERÊNCIAS

MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Condução coercitiva e polícia judiciária. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4487, 14 out. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2015.

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.

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Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

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