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Prisão para que(m)?


Por André Peixoto de Souza 


O senso comum responderá: para prender bandidos.

Mesmo na areia da praia, em férias, com amigos e familiares, o mate passando, ainda insistimos nessas conversas “jurídico-político-econômicas”, e o filho/sobrinho/primo/amigo advogado sempre está (deve estar!?) a postos para responder às questões dos pais/tios/primos/amigos, ainda mais quando as “Retrospectivas” do ano que finda colocam em [mais] evidência os temas [já] evidentes da corrupção, da violência, das tragédias. Parece que só há maldade nessa Terra!?

Mas, enfim, é divertido conversar com a parentada sobre isso tudo. E este filho/sobrinho/primo/amigo advogado, que se põe a estudar alguma coisa sobre Economia Política e Direito Penal, não perde a oportunidade de dizer – e dificilmente ser compreendido – algo sobre abolicionismo penal, sobre função da pena, sobre sistema carcerário, sobre a tão famigerada ressocialização, e, inevitavelmente, algo sobre luta de classes, sobre dialética do senhor e do escravo, sobre meritocracia, sobre sistema capitalista e opressão e egoísmo e consumismo.

Este filho/sobrinho/primo/amigo advogado, pouco e recente estudioso do Direito Penal, deve lembrar aos parentes e amigos, antes de tudo, que a pena não existe! Aprendemos com RUSCHE-KIRCHHEIMER que o que existe são sistemas punitivos, práticas penais moldadas pelo sistema social e principalmente econômico de cada nação, em sua época. E que, por isso mesmo, na passagem do sistema feudal (sistema sócio-econômico do medievo) para o sistema capitalista (sistema sócio-econômico da modernidade) prevaleceu o interesse da classe que passou a ditar as regras da política e da economia daquele tempo, aquela classe esclarecida, ilustrada, culta, proprietária (rica!), “revolucionária” (ao poder absoluto) e liberal: a burguesia. Daí uma primeira conclusão, quase matemática (lógica), aos amigos e familiares: o sistema punitivo (logo, o Direito Penal) da modernidade é um sistema tipicamente burguês.

O parente e amigo advogado-professor precisa explicar também, pés descalços e bermuda e camiseta, agora portador da cuia do chimarrão, que a superpopulação europeia de fins do séc. XV – vislumbrada pela grandiosa alteração de modelo político a partir do encerramento definitivo do Império Romano (do Oriente) – suscitou um excedente de mão-de-obra e, consequentemente, o “desemprego”, a fome, a miséria, e, daí, o aumento da criminalidade, baseada principalmente na propriedade: roubar e matar para comer! Nesse contexto, aqueles detentores do poder político e econômico (os burgueses) elaboram um sistema punitivo que objetiva a preservação da propriedade (que, afinal, é sua!). Por isso recolhemos dos anais da história das punições, logo no início do séc. XVI, as penas mais atrozes direcionadas à “marginália” – a ordem era se livrar dos sujeitos “perigosos” que ameaçavam a propriedade burguesa: açoite, mutilação, marcação a ferro, banimento, morte. Nem precisaria dizer que a própria burguesia NÃO se submetia a esse tipo de pena. Aliás, logo em seguida, foi criada a FIANÇA! Então, quem tem dinheiro paga a fiança e não é açoitado/mutilado/marcado-a-ferro/banido/morto.

Imagina a cara da parentada! Passa a cuia.

Mas sempre tem aquele tio engraçadinho que logo vai gritando… “Isso é conversa mole! Bandido tem que ir pra cadeia mesmo!”… E aí o advogado-professor pensa: “O tio não está entendendo nada…”. E professor que se preze não desanima! Então, emenda logo um novo argumento, mostrando que o séc. XVI alterou substancialmente a forma punitiva – capaz de nos atingir, em pleno séc. XXI, dada a sua nova caracterização: a exploração da força de trabalho do preso.

Isso começou, diz o sobrinho ao tio incrédulo, com as penas de galés, no tempo das expedições ultramarinas. Cada galé (grande embarcação transatlântica que rumava à Colônia para capturar riquezas e retornar à Metrópole) necessitava de centenas de remadores! O emprego era mal remunerado e extremamente insalubre (muitíssimos remadores não sobreviviam à desnutrição e às doenças). Portanto, traçou-se a “brilhante estratégia” de criminalizar a mendicância e a vadiagem, com a pena de galé: mão-de-obra barata (só alguma comida) para remar os transatlânticos, em busca das riquezas das Colônias. Aqui está o mercantilismo (primeira fagulha do sistema capitalista!) sendo em parte sustentado por um método punitivo! Há que se lembrar de MORUS: “seria pouco sábio executar malfeitores, pois seu trabalho é mais lucrativo que sua morte”. Afinal, também já aprendemos com MARX que o capitalismo só se viabiliza a partir de um processo de apropriação do trabalho, portanto, é na dominação do homem (de seu tempo, de sua força produtiva) que o capital se expande.

Aquele tio, desconfiado, levanta a sobrancelha e ainda não entende, mas o sobrinho percebe que na realidade ele não quer entender.

De arremate surge o tema das Casas de Correção. A notícia de uma primeira data de 1555, em Londres. Seu principal objetivo era tornar úteis os indesejáveis, através da sua força de trabalho. Para “indesejáveis”, leia-se: órfãos, idosos, mendigos, vagabundos, prostitutas, ladrões. As Casas de Correção estavam, portanto, e antes mesmo da PRISÃO – expediente tipicamente moderno – preparando mão-de-obra para o mercantilismo crescente, e mais tarde viria a ser base para o desenvolvimento do industrialismo, em fins do séc. XVIII. Bem encaixa aqui a ideia da VERA BATISTA, quando afirma que o poder punitivo necessita de novas propostas e técnicas para dar conta da concentração de pobres provocada pelo processo de acumulação do capital (por isso, a rede de prisões, de manicômios, internatos, orfanatos, asilos). Isso tudo se converterá em prisão, no séc. XVIII, e chegará a nós, depois de inúmeras experiências ao longo de dois séculos e meio, para o estágio atual dos “projetos” de superpopulação carcerária e consequente “necessidade” de privatização dos presídios (cujo tema já desenvolvi na coluna de 12/10/2015).

É necessário aprofundar, não para convencer o tio, porque conversa de beira de praia não tem essa pretensão… mas, apenas para melhor explicar.

A grande questão de fundo (dos sistemas punitivos) é a relação estabelecida entre cárcere e sociedade. Ou seja: quem está (deve estar) dentro e que está (deve estar) fora. É uma questão posta por BARATTA: quem tem o poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização? Pois a chave da questão está em compreender quem detém o poder de dizer o que é crime. Do lado de cá do poder, tem-se que a delinquência – mesmo aquela mais repugnante – é uma história de privações. Privações que vão desde a inexistência/desestruturação do seio familiar (do que decorre a ausência de afeto e de autoridade), até o estado “sub” nos aspectos culturais, sociais e econômicos (subnutrição, subcultura, subemprego, submoradia = submundo). Diante desse quadro histórico, ALVINO AUGUSTO DE SÁ põe a seguinte questão: “como “corrigir” uma história de privações, impondo-se outras privações?” [tais como o cárcere, a punição…].

A cuia voltou cheia. O orador de praia prossegue citando BECCARIA: “… a maior parte das leis não são mais do que privilégios, isto é, um tributo que todos pagam para o conforto de alguns”. E FERRAJOLI: “… em muitos ordenamentos as pessoas vão sendo responsabilizadas por sua forma de ser – bruxas, ébrios, anarquistas, subversivos, meliantes, inimigos do povo, perigosos, suspeitos etc. – e não pela sua forma de agir. Este mecanismo punitivo, mais constitutivo do que regulador, choca-se com a garantia de culpabilidade”. Portanto, somada à privação, a “rotulação” se tornou fator “objetivo” para a “culpabilidade” – e para a “criminalização de massa” (repetida nos programas de TV e aplaudida pelos telespectadores) e, consequentemente, para a aceitação do cárcere como medida de proteção da sociedade!

PROTEÇÃO DA SOCIEDADE! Repete-se aos quatro ventos: o cárcere serve para proteger-nos! Sobre isso, encontramos mais respostas na análise de ALVINO SÁ, quando aduz que no nível consciente o que se pretende é estar livre do “transtorno” ou do “perigo” que representa o criminoso. No nível inconsciente, temos a expulsão dessa “ameaça” (que se interioriza e se nos projeta, intimamente e potencialmente), simbolizando a “expulsão do criminoso que existe dentro do indivíduo”. Ou seja: “por intermédio da prisão, a sociedade se ‘purifica’ e se livra de todos os seus males”. Sendo assim, o criminoso passa a ser “um concentrado de todos os males da humanidade, e a sociedade tem necessidade urgente de puni-lo severamente, prendê-lo, segregá-lo, pois assim estará punindo o que existe de ruim dentro dela”.

Por isso é fácil entender aquele tio, aqueles familiares e amigos, aqueles telespectadores dos programas sensacionalistas em modelo norte-americano, a respeito da resposta em senso comum: “bandido tem que ir pra cadeia mesmo!”. Pois FORA do cárcere está o bom, o mocinho… como “eu” (ego) sou bom, logo, devo estar aqui fora. Quem é mau deve estar segregado. Esta é uma simples solução providenciada pelo ego quando diante de um conflito: projetar a culpa interna nos outros. Ora, guardadas as proporções, a prisão tem o mesmo efeito! O cárcere – todo o sistema penitenciário – “colabora para que a sociedade se aliene em relação aos seus próprios conflitos” (SÁ). “A muralha das prisões representa uma barreira que separa a sociedade e seus próprios conflitos” (BARATTA).

A essa altura o tio nem consegue mais acompanhar o assunto… tenta puxar um “a culpa é do PT”… algumas risadas na roda de praia… mas o sobrinho finaliza, ainda inspirado por ALVINO SÁ: enquanto pensarmos no crime como simples infração penal, desprovida de drama e conflito humano, serão inócuas as tentativas de se resolver o problema por meios “ressocializadores”. Afinal, o crime é expressão de conflito humano! E sendo assim, não se deve pretender resolver a infração à norma penal, e sim o conflito que ela expressa! “E para se enfrentarem e resolverem esses conflitos, uma longa caminhada deve ser feita, uma caminhada sem fim, que dura enquanto durar a humanidade. Uma caminhada de descoberta de valores, de superação de antinomias, de descoberta de si mesmo e do outro, uma caminhada de reconciliação e de perdão” (SÁ).


Tal como aquele tio, as pessoas não querem entender. A “espetaculização” (“datenização”) do Direito Penal está vencendo (por isso é necessário resistir!). Em geral, as pessoas se interessam pelas notícias sobre crime, e há uma explicação científica para isso (daria um outro texto inteiro, e precisaríamos de categorias da psicanálise – deixemos isso para outra ocasião). Pode-se adiantar, apenas, em CARNELUTTI, que aqueles enjaulados no cárcere são vistos por nós não como seres humanos “partícipes de uma triste realidade”, mas como “pessoas fictícias” ou mesmo “animais de um jardim zoológico”, distantes, inimigos, bandidos, que MERECEM estar na jaula.

Não há melhor citação do que CARNELUTTI para expressar as “misérias” do cárcere e do encarcerado:

“Quando, pela compaixão, reconheci no pior dos presos um ser humano, como eu, quando se dissipou toda aquela névoa que me impedia de ver que eu nunca fui melhor do que ele, quando senti pesar sobre mim também a responsabilidade pelos seus delitos, quando eu meditava, naquela Sexta-Feira Santa, diante da cruz e senti uma voz bradar dentro de mim: ‘Judas é teu irmão’, compreendi que os homens não podem ser divididos em bons e maus, tampouco em livres e presos, pois fora do cárcere existem pessoas muito mais presas do que as que estão dentro dele e, dentro dele, muitas pessoas muito mais livres do que as que estão, em liberdade, fora dele. Todos nós somos prisioneiros do nosso egoísmo, uns mais, outros menos, mas talvez não haja maior ajuda para nos livrarmos dele do que conhecermos as pobres criaturas enclausuradas entre os muros de uma penitenciária.”

E, inevitavelmente, FREUD:

“Quando uma civilização não conseguiu evitar que a satisfação de um certo número de seus membros tenha como premissa a opressão de outros, talvez da maioria – e é isto que acontece em todas as civilizações atuais –, é compreensível que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade contra a civilização que eles mesmos sustentam com seu trabalho, porém de cujos benefícios eles não usufruem, ou usufruem muito pouco. Neste caso, não se pode esperar, por parte dos oprimidos, uma assimilação das proibições culturais, mas, pelo contrário, eles se negarão a reconhecê-las, tenderão a destruir essa própria civilização e eventualmente a suprimir suas premissas. A hostilidade destas classes sociais contra a civilização é tão evidente que ela monopolizou a atenção dos observadores, impedindo-os de ver a hostilidade latente que as outras camadas sociais mais favorecidas também abrigam”.


Terminou a água quente. Uma filha pede um milho. Chega de explicação. Que papo chato para uma beira de praia. (Férias!!??). Mas, como dito, foi e sempre é divertido. Um pouco cansativo. Logo em seguida este filho/sobrinho/primo/amigo advogado-professor precisará de férias das férias! Apenas não deixará na mão o Canal Ciências Criminais. Feliz Ano Novo!!!

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André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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