ArtigosDireito Penal Tributário

Sonegação fiscal e lavagem de dinheiro

Por Henrique Saibro

Com as rigorosas alterações legislativas promovidas pela Lei nº 12.683/12, o legislador passou a incluir todas as infrações penais como delitos antecedentes do crime de lavagem de dinheiro[1] – “não há mais uma lista fechada (numerus clausus) de delitos precedentes”[2]. Segundo SAADI[3], tal mudança foi resultado do alinhamento do Brasil a legislações mais modernas e aos padrões recomendados pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), que em junho de 2011 apresentou uma série de críticas ao nosso país principalmente em razão das poucas condenações finais por lavagem de dinheiro.

Nessa condição, a ocultação ou dissimulação de bens provenientes da vantagem econômica auferida por crimes tributários passaram a configurar lavagem de dinheiro.  Igualmente, a novel lei acrescentou à antiga redação do § 1º do art. 2º da Lei nº 9.613/98, a previsão de punição ao crime de lavagem de dinheiro inclusive quando extinta a punibilidade da infração penal antecedente. Ficou claro, pois, que “a acessoriedade do crime de lavagem de dinheiro é limitada, não chegando ao ponto de exigir que infração antecedente seja punível”[4].

Surge, portanto, uma nova dimensão[5] nos crimes tributários. O pagamento, que antes seguia uma política explicitamente arrecadatória quanto à punibilidade do crime tributário[6] – prova disso é a recente decisão do STJ, que reconheceu a extinção da punibilidade do réu em virtude do pagamento mesmo após o trânsito em julgado do processo penal[7] –, agora demonstra “a total irrelevância do pagamento ou do parcelamento quanto a eventual crime ulterior de lavagem”[8].

Assim, mesmo efetuando a quitação do quantum sonegado, isentando-se de pena, o réu poderá figurar em um novo enredo criminal; dessa vez cuidando-se de ocultação ou dissimulação de produto econômico da sonegação. Apesar dessa alteração legislativa, a fenomenologia da autonomia do crime de lavagem já existia na legislação anterior.

É dizer, antigamente também poderia “haver inclusive condenação por crime de lavagem, independentemente de condenação ou mesmo da existência de processo pelo crime antecedente”[9], malgrado o branqueamento de capitais ser considerado “um crime acessório ou parasitário”[10] – isso é, dependa da ocorrência de outra figura típica para o seu aperfeiçoamento.

Nos limites deste artigo, vejamos a seguir as decorrências penais/processuais penais em caso de suspensão da exigibilidade do crédito tributário e de sua garantia em processo penal que visa apurar a prática do crime de lavagem de dinheiro, levando em consideração as regras atinentes às decisões de recebimento da denúncia e de condenação.

Mais uma vez deparamo-nos com uma carência doutrinária e uma variedade jurisprudencial sobre o tema. ARAS entende que, como o objeto material do crime de lavagem de dinheiro é o produto econômico do crime antecedente e, tendo em vista que o crime tributário material considera-se apenas consumado – segundo o entendimento sedimentado do STF[11] – com a constituição definitiva do crédito tributário (exaurimento da via administrativa), mostra-se inviável, previamente à instauração de inquérito policial, “a promoção de medidas cautelares, ou de ação penal para apuração de lavagem de dinheiro enquanto não for definitivo o lançamento, salvo se houver indicativo de outra infração antecedente”[12].

Seguindo esse mesmo diapasão, GOMES defende que, se sem o exaurimento da via administrativa não há crime tributário, “não há que se falar também em lavagem de dinheiro (antes do término do procedimento fiscal)”[13]. Portanto, os referidos autores possuem o entendimento doutrinário no sentido de que, sem o prévio exaurimento da via administrativa, descabe inclusive o recebimento da denúncia sobre branqueamento de capitais tendo como infração prévia a sonegação fiscal.

Todavia, a maioria maciça da jurisprudência pátria vai no sentido de que o exaurimento da via administrativa – por mais que seja pressuposto de tipicidade penal para o delito tributário material – não gera obstáculo para o recebimento da denúncia sobre lavagem de dinheiro (quando o crime antecedente for a suposta sonegação fiscal). É que, segundo o STJ, o delito de lavagem é autônomo em relação à infração antecedente, razão pela qual é inviável o trancamento do processo penal tratando sobre a lavagem “com base no não lançamento definitivo do crédito na seara administrativa”[14].

Essa maleabilidade probatória da infração antecedente alcunha-se acessoriedade limitada[15], que, segundo BALTAZAR JUNIOR, é procedente “especialmente no fato de que, frequentemente, a lavagem de dinheiro se dá de forma transnacional e não seria razoável depender de outra jurisdição para o julgamento da infração penal antecedente, com as dificuldades decorrentes”[16].

Os tribunais regionais federais partem do mesmo diapasão. Em habeas-corpus impetrado no TRF-1[17], o Colegiado, em que pese ter admitido que enquanto não houver o encerramento do processo administrativo fiscal, nos crimes materiais contra a ordem tributária, “não pode se iniciar a ação penal eis que faltante condição de procedibilidade para o procedimento judicial”[18], não concedeu a ordem em razão de as investigações não se esgotarem à apuração da prática de crimes tributários, senão, também, de delitos previstos nos arts. 288 (associação criminosa), 299 (falsidade ideológica), 334 (contrabando ou descaminho), todos do Código Penal, bem como no art. 1º, V e VII, da Lei nº 9.613/98 (lavagem de dinheiro)[19].

E as demais recentes jurisprudências dos tribunais regionais federais admitem o paralelismo de inquérito policial/processo penal versando sobre crime tributário e processo administrativo fiscal (ainda não finalizado), desde que haja na persecução penal indícios de outros crimes independentes, como o é a lavagem de dinheiro – pelo que não há falar em ofensa à Súmula Vinculante nº 24[20].

Entretanto, sem dúvida esse tema merece uma análise mais aprofundada, mormente no que tange aos eventuais efeitos decorrentes das causas suspensivas e garantidoras do crédito tributário. É dizer, se elas afetam (ou não) o recebimento da denúncia sobre crime de lavagem de dinheiro, bem como a própria condenação. Adiantamos, previamente, que novamente iremos nos deparar com uma grande carência doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, razão pela qual se mostrou importante uma análise análoga das decisões dos tribunais e dos entendimentos doutrinários para o desenrolar do estudo[21]. É o que veremos, com maior profundidade, no próximo artigo.

__________

[1] Antes da alteração legislativa, o rol de crimes antecedentes era limitado aos seguintes delitos: a) tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; b) terrorismo; c) terrorismo e seu financiamento; d) contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; e) extorsão mediante sequestro; f) infrações contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; g) crimes contra o sistema financeiro nacional; h) delitos praticados por organização criminosa; e i) crimes praticados por particular contra a administração pública estrangeira.

[2] ARAS, Vladimir. A Investigação Criminal na Nova Lei de Lavagem de Dinheiro. Boletim IBCCRIM, n. 237, ago. 2012.

[3] SAADI, Ricardo Andrade. O Combate à Lavagem de Dinheiro. Boletim IBCCRIM, n. 237, ago. 2012.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos Penais e Processuais Penais: Comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 261.

[5] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; ESTELLITA, Heloisa. Lei de Lavagem dá Nova Dimensão ao Crime Tributário. Disponível aqui. Acesso em: 16/05/2014.

[6] Interessante a opinião de BITENCOURT a respeito do assunto: “É certamente questionável a legitimidade da utilização da coerção penal para compelir o devedor a saldar suas dívidas para com o fisco. Entretanto, se analisamos hoje a questão, levando em consideração os efeitos obstativos que a discussão em procedimento administrativo-fiscal (acerca da existência do crédito tributário ou da quantia do débito tributário) produz sobre o exercício da persecução penal, podemos afirmar que a concepção do Direito Penal como ultima ratio do sistema resulta em maior medida preservada” (BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 275-276).

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.234.696, da 5ª Turma, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Brasília, DF, DJe 03/02/2014. Disponível aqui. Acesso em: 16/05/2014.

[8] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; ESTELLITA, Heloisa. Lei de Lavagem dá Nova Dimensão ao Crime Tributário. Disponível aqui. <>. Acesso em: 16/05/2014.

[9] MORO, Sergio Fernando. Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 88.

[10] TEBET, Diogo. Lei de Lavagem de Dinheiro e a Extinção do Rol dos Crimes Antecedentes. Boletim IBCCRIM, n. 237, ago. 2012.

[11] “Quanto aos delitos tributários materiais, esta nossa Corte dá pela necessidade do lançamento definitivo do tributo devido, como condição de caracterização do crime. Tal direção interpretativa está assentada na idéia-força de que, para a consumação dos crimes tributários descritos nos cinco incisos do art. 1º da Lei 8.137/1990, é imprescindível a ocorrência do resultado supressão ou redução de tributo. Resultado aferido, tão-somente, após a constituição definitiva do crédito tributário. (Súmula Vinculante 24)” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus n. 99.740, da 2ª Turma, Relator: Ministro Ayres Britto, Brasília, DF, DJe 01/02/2011. In: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000164222&base=baseAcordaos. Acesso em: 03/06/2014).

[12] ARAS, Vladimir. A Investigação Criminal na Nova Lei de Lavagem de Dinheiro. Disponível aqui. Acesso em: 03/06/2014.

[13] GOMES, Luiz Flávio. “Black Money”, “Dirty Money” e a Lavagem de Dinheiro. Disponível aqui. Acesso em: 03/06/2014.

[14] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas-corpus n. 243.889, da 6ª Turma, Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe 11/06/2013. Disponível aqui. Acesso em: 04/06/2014. Nesse mesmo sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em habeas-corpus n. 20.040, da Quinta Turma, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Brasília, DF, DJe 07/02/2008. Disponível aqui. Acesso em 07/06/2014.

[15] BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1135.

[16] Idem, ibdem.

[17] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Habeas-corpus n. 12.904, da Terceira Turma, Relator: Juiz Federal convocado Renato Martins Prates, Brasília, DF, DJF1 03/05/2013. Disponível aqui Acesso em: 08/06/2014.

[18] Idem, ibdem.

[19] Ademais, merece maior destaque parte do julgado que não concedeu sequer a ordem para trancar parte da investigação destinada à apuração de sonegação fiscal, “porquanto ainda não foi oferecida e recebida a denúncia, momento no qual poderá ter sido constituído o crédito tributário no âmbito administrativo, pelo que seria precipitado o trancamento do inquérito policial”[19] – ao contrário dos julgados supramencionados.

[20] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Habeas-corpus n. 5.416, da Quarta Turma, Relator: Desembargador Federal convocado Ivan Lira de Carvalho, Recife, PE, DJE 24/04/2014. Disponível aqui. Acesso em: 08/06/2014; BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Habeas-corpus n. 0012322-54.2010.404.0000, da Oitava Turma, Relator: Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Porto Alegre, RS, D.E. 27/05/2010. Disponível aqui. Acesso em: 08/06/2014.

[21] TURBIANA ressalta que, apesar de as alterações provenientes da Lei nº 9.613/98 já não serem tão recentes, “o presente momento ainda é embrionário para a formação de entendimento jurisprudencial” acerca de tais mudanças (TURBIANI, Gustavo de Castro. Crime Fiscal e Lavagem de Dinheiro: As Alterações Legais e a Atual Necessidade de Reafirmação de Antigas Premissas Sobre os Tipos Penais. Boletim IBCCRIM, n. 264, nov. 2014).

HenriqueSaibro

Henrique Saibro

Advogado. Mestrando em Ciências Criminais. Especialista em Ciências Penais. Especialista em Compliance.

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