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As 48 horas do Júri que parou uma cidade (Parte 2)


Por Jean de Menezes Severo


Fala moçada! É uma baita alegria saber que os amigos leitores estão muito interessados no desfecho deste fantástico julgamento que ocorreu na cidade de Dom Pedrito na semana passada e que eu tive a honra de participar na qualidade de advogado de DEFESA. Antes de iniciar, ou melhor, de finalizar esta história, gostaria de mandar um abraço do tamanho do mundo para todos os moradores da cidade de Dom Pedrito/RS. Eu e meu colega, Dr. Gustavo Nagelstein, fomos tratados com o maior carinho e respeito pela comunidade desta colenda cidade, como falei no início da minha fala no julgamento: Dom Pedrito já lhe tenho amor! O meu eterno agradecimento! Vamos à colunaaaaaaaa!

Domingo, dia 06/03, na volta do maravilhoso almoço servido na casa de um dos acusados, eu e Gustavo retornamos ao estudo dos autos. Como falei anteriormente, tratava-se de um processo com muitos volumes e toda a atenção era necessária nesses casos. Conhecer o processo de “capa a capa” é fundamental como repito constantemente e aqui não seria diferente. Confesso aos amigos que nesta noite anterior ao júri não preguei o olho. A ansiedade de iniciar os trabalhos falou mais alto. Antes destes julgamentos rumorosos, tudo deve ser pensado, cada vírgula, cada palavra que vai ser proferida no plenário do júri. Até o advogado mais experiente sofre desse mal chamado estado de júri. Não se explica do estado de júri, apenas se sente.

Segunda-feira, logo cedo, de posse do chimarrão preparado com todo capricho, rumamos ao fórum de Dom Pedrito, em uma de nossas mais difíceis missões em nossas carreiras na advocacia criminal: não deixar aqueles dois acusados serem condenados a uma pena de reclusão de 12 a 30 anos.

Ao chegar, deparamo-nos com os demais colegas advogados que dividiram aquela arena conosco: os doutores Andrei Zenkner Schmidt e Luiz Bulcão. Depois de nos cumprimentarmos, iniciamos nosso trabalho antes mesmo do começo do júri e nossa estratégia se mostrou acertada ao final do julgamento. Havia grande sintonia entre os advogados que estavam trabalhando neste processo e isso, sem dúvida, isso foi essencial para o resultado que sairia apenas na madrugada da quarta-feira.

Nos julgamentos do tribunal do júri no qual há mais de um acusado, o tempo para os debates horais é de duas horas e meia para a acusação e para a defesa, isto é, são duas horas e meia que devem ser bem distribuídas entre ambos os réus e seus defensores. Se forem quatro pronunciados, mantém-se o tempo de 2h30min, portanto, cada defesa dispõe de apenas pouco mais de 30 min para se manifestar. Uma defesa no Tribunal do Júri de meia hora, 30 minutos, 1800 segundos é o máximo de tempo que tínhamos para realizar esta “Missão Impossível” na distante Comarca de Dom Pedrito.

Cada segundo era preciso, por isso, era vital que trabalhássemos em completa sintonia, para que um não atrapalhasse o outro, o que poderia estragar completamente nossa estratégia defensiva, previamente combinada. Ao todo, éramos quatro defensores e tínhamos decidido o papel de cada um naquela tarefa digna de um Hércules moderno; quem iniciaria os debates e quem os encerraria. Tudo deveria ocorrer em perfeita sincronia.

Jurados sorteados, dúvidas dirimidas e o júri se iniciava. Quero deixar meus cumprimentos ao Juiz-presidente, Dr. Luis Felipe, que conduziu os trabalhos de forma brilhante, sendo imparcial com as partes (defesa e MP) e enérgico quando necessário. O Judiciário do Rio Grande do Sul está muito bem serviço em ter um magistrado deste quilate em seus quadros funcionais.

O primeiro dia (segunda-feira) foi destinado à oitiva das testemunhas de acusação e de defesa, nesta ordem, obrigatoriamente. Ao todo, mais de vinte testemunhas haviam sido arroladas, sendo cinco de acusação e cinco de defesa (de cada acusado). O que mais chamou a atenção de todos foi que cada testemunha de acusação dava uma versão diferente dos fatos. Não houve, em nenhum momento, uma segurança na produção da prova testemunhal no sentido de se apontar os culpados e sua participação nos fatos.

Nota-se que este processo, no entender defensivo, foi muito mal conduzido na fase da investigação. A autoridade policial preocupou-se mais com os holofotes midiáticos do que com a efetiva solução do caso, esclarecendo-se a verdadeira autoria delitiva, ao invés de correr atrás de um bode expiatório. Não sou eu que afirmo isso, mas sim as provas dos autos.

Todos os depoimentos apontam para diferentes direções, como se as testemunhas tivessem assinado tais depoimentos sem os terem lido.

Exemplo das reais intenções do delegado responsável foi ordenar que os suspeitos desfilassem, algemados, pelo meio da cidade, aos olhos de todos, estando cada um deles em um carro diferente; uma carreata da tragédia humana. As sirenes das viaturas foram ligadas na máxima potência para que fizessem o maior barulho possível e chamassem a atenção de todos, assim como as janelas, que foram escancaradas, para que as faces dos suspeitos fosse bem visível. Naquela cidade o crime não ficava impune; havia o sentimento de “dever cumprido”. Essa era mensagem do delegado.

Meus caros leitores, não adianta: quando o inquérito policial é mal conduzido, certamente isso irá atrapalhar o trabalho do promotor de justiça. Uma má investigação resulta em uma má acusação em qualquer processo. Embora seja advogado de defesa, não nego que o Ministério Público e a Polícia possuem importante função no zelo da segurança pública, mas, para isso, é preciso que façam um bom trabalho de investigação, mas respeitando-se as garantias dos suspeitos a fim de não se anular todo o processo.

Naquele dia, durante a leitura dos depoimentos prestados em sede policial durante o plenário, era visível que alguma coisa “não cheirava bem”.

A oitiva das testemunhas acabou na segunda-feira à noite, adentrando na madrugada de terça-feira. Retornamos exaustos para o hotel. Mais um dia havia sido vencido e logo pela manhã; mais uma noite mal dormida. O processo estava pronto, na ponta da língua; só queria que amanhecesse logo. A defesa estava pronta para falar!

Terça-feira, dia 08/03, os trabalhos começaram com o interrogatório dos réus. Todos os acusados falaram com muita verdade e emoção, afinal de contas, eles estavam próximos de decidir suas vidas e a de seus familiares. Havia um clima de muita emoção no ar e logo à tarde iriam começar os debates. Estávamos todos em estado de júri; concentração pura antes da derradeira fala acusatória.

Os debates começaram logo depois do almoço. Aqui, antes de tudo, venho cumprimentar os promotores que atuaram neste feito; excelentes plenaristas e oradores, ambos muito educados para com a defesa. Realizaram um trabalho limpo, leal, e muito bem feito, o que dificultava ainda mais a nossa missão, que já era difícil. Ao fim daqueles 150min, a acusação pediu aos jurados que os quatro acusados fossem condenados por homicídio triplamente qualificado. Sustentou o Ministério Público que os réus agiram em coparticipação, por isso, pleitearam a pena máxima a todos os envolvidos e assim pleitearam a condenação dos acusados com pena máxima.

Pois bem, a defesa tem a palavra: A primeira manifestação foi do Dr. Andrei Schmidt, que defendeu seu constituído, assim como os demais acusados, pois, como já referi, todos se encontravam na mesma situação. Jamais vi defensores de réus diferentes trabalharem de uma maneira tão harmônica em plenário. O Dr. Andrei foi simplesmente brilhante em sua defesa, um verdadeiro e letal “sniper”: preciso, técnico, cirúrgico, um tribuno como poucos que eu vi na vida.

O segundo a entrar em campo foi o Dr. Luiz Bulcão, advogado da região e que conhecia o processo como ninguém. Não esperava menos do Dr. Bulcão, nada além daquela brilhante defesa junto ao plenário. Se seu antecessor foi mais técnico, coube ao Dr; Bulcão a tarefa de trabalhar com este processo de modo familiar aos jurados, aproximando-o da realidade dos autos, isto é, fazer com que os acusados deixassem de ser pessoas estranhas a eles, mas sim membros daquela comunidade da qual todos faziam parte.

Terminado seu papel, assumiu sua vaga o Dr. Gustavo Nagelstein, meu colega de escritório e um irmão que a vida me deu, filho do maior tribuno do Rio Grande do Sul, Dr. Mathias Nagelstein. Defendíamos dois dos réus. O Dr. Gustavo Nagelstein herdou do seu querido velho a mesma força e elegância na atuação em plenário. Ele simplesmente deu um SHOW na defesa dos nossos constituídos; que orgulho trabalhar ao lado deste amigo.

Também não posso esquecer o trabalho realizado pelo meu colega Tapir, que ficou na retaguarda, atento a tudo o que acontecia no plenário, principalmente vigiando as falas do MP e da DEFESA. Tapir estava mergulhado nos autos. Quando precisávamos saber de qualquer informação, perguntávamos para ele que, de maneira rápida, fornecia-nos tudo. Obrigado, Tapir índio velho, como o chamava nas aulas do mestrado.

Todos nós, defensores, somados às assistentes do Dr. Bulcão, todos nós tivemos a mesma importância no plenário, foi um time que trabalhou com uma harmonia nunca vista!

Por fim, coube a mim encerrar a defesa. Deixei o velho coração falar, pedi apenas a Deus me ajudasse a defender aqueles meninos da melhor maneira possível e guiasse meus passos naquele júri tão difícil.

Os debates encerraram-se depois das onze da noite daquela terça-feira. A acusação não foi à tréplica, o que demandaria mais duas horas para cada lado, estendendo o julgamento para o dia seguinte.

A votação dos quesitos na sala secreta foi um momento de puro mistério. Ali tudo seria decidido. Era preciso que os jurados tivessem compreendido corretamente as nuances de nossos argumentos defensivos.

A votação do primeiro quesito foi tranquila. Os jurados reconheceram a materialidade do delito, ou seja, que se tratava de uma morte violenta, não natural.

A votação do segundo quesito também não apresentou problemas. A autoria foi facilmente imputada a todos os acusados pelos jurados.

O fundamental era o quesito número 3: houve dolo dos acusados na morte da vítima? Isto é, o homicídio é fruto da vontade dos réus?

Resultado: O júri acreditou em nossa tese defensiva. Nossos clientes não tiveram a intenção causar a morte da vítima. Não houvera homicídio, isto é, uma morte proposital, premeditada, mas sim um acidente, uma fatalidade da vida.

Buscamos a desclassificação para lesão corporal seguida de morte, o que ocorrera no caso, com o intuito de afastar a competência do Tribunal do Júri, portanto, cabendo ao juiz de direito da vara criminal a prolação da sentença.

Mas, para que isso ocorresse, era necessário que Conselho de Sentença acreditasse na ausência desse dolo de matar. Então, o juiz-presidente começou a abrir os votos do terceiro quesito.

“Sim”, “sim”, “sim”… Começamos com um 3×0 a favor da acusação, isto é, os denunciados tiveram a intenção de matar. O tempo parou, o coração gelou, ficamos sem qualquer reação.

Então, veio o quarto voto. “Não”. A faísca da esperança se acendeu. Depois outro “não” e o sexto voto… “Não”. O quadro estava 3×3. A faísca se transformou em chama e estava pronta para arder quando do 7º voto.

O juiz-presidente abriu o voto final: NÃO! Outra palavra diversa a alívio não poderia descrever aquela sensação, aquele sentimento.

Acredito que não há injustiças no Tribunal do Povo. Sua compreensão, seu sentimento de justiça, sua consciência não é distinta da do mais respeitado ministro do Supremo Tribunal Federal. Jurados erram, assim como os juízes togados, mas o sentimento de justiça é o mesmo.

Encerrada a votação, todos nós, (juiz, promotores, advogados) voltamos para o plenário que estava lotado, apesar do adiantado da hora, pois passava já da uma da manhã. Era o momento de proferir o veredicto a todos: acusados e população. Toda a cidade estava na espera.

Todos se levantaram para ouvir a decisão. Os quatro réus perfilaram-se diante do magistrado e ouviram com serenidade o veredicto: que haviam sido absolvidos da acusação de homicídio qualificado, mas ainda responderiam pela acusação de lesão corporal seguida de morte, ficando a seu encargo a prolação final da sentença, com a determinação das respectivas penas.

Os quatro acusados sentiram como se tivessem renascido de novo diante desse veredicto, pois tinham plena ciência do peso da acusação e das penas que teriam que cumprir caso fossem condenados por homicídio qualificado.

Até o trânsito em julgado da decisão, poderiam prosseguir em liberdade, usufruindo, agora, com mais vigor, essa nova chance que a vida lhes dera.

E a sensação de ter sido corresponsável por essa vitória é de difícil descrição.

Assim encerrou-se mais um dia na vida profissional deste rábula diplomado que vos escreve diariamente. Mais um júri feito com todo empenho.

Termino esta história deixando meu mais fraterno obrigado aos meus queridos colegas: Andrei, Tapir, Gustavo e Bulcão. Nunca vou esquecer este processo.  Mais de dois dias de um júri que parou uma cidade: Dom Pedrito.

Também deixo minhas estimadas palavras ao maior de todos nós e que, por motivos de saúde, não pôde nos acompanhar e presenciar o fim desta jornada, começada por ele anos atrás: Dr. Mathias Nagelstein. Tenho certeza que ele deve estar muito orgulhoso pelo nosso trabalho e pela perpetuação de seu legado através de seu filho e colega, Gustavo.

Não falei de mim antes porque quero que vocês, leitores, assistam e ouçam, por sua própria conta e risco, uma “palhinha” de minhas palavras (o vídeo tem leve “delay”). Espero que elas sirvam se inspiração e ajuda a todos que queiram prosseguir na carreira da advocacia criminal, especialmente o Tribunal do Júri. Obrigado pela atenção e até semana que vem, com mais uma coluna e mais um júri, porque a defesa nunca para.

https://youtu.be/sPmKsznDW7w

JeanSevero

Foto: QWERTY Portal de Notícias

Jean Severo

Mestre em Ciências Criminais. Professor de Direito. Advogado.

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