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As consequências da anulação da pronúncia por excesso de linguagem

As consequências da anulação da pronúncia por excesso de linguagem

O Código de Processo Penal prevê, em seu art. 413, caput, que o juiz, de maneira fundamentada, pronunciará o acusado, acaso esteja convencido da materialidade e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

A lei processual penal adverte, no entanto, que a fundamentação da pronúncia ficará limitada à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o magistrado apontar o dispositivo legal no qual o acusado está incurso e especificar as circunstâncias qualificadoras, além das causas de aumento de pena (art. 413, §1º).

Eventual desrespeito ao regramento supramencionado ensejará a nulidade da decisão de pronúncia por excesso de linguagem, naquilo que a doutrina convencionou chamar de eloquência acusatória.

Em razão disso, ainda que a CF/88 imponha um dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX), deve o magistrado (em caso de pronúncia) ou o Tribunal (na hipótese de acórdão confirmatório dela), adotar a linguagem mais comedida possível, não revelando impressões que indiquem verdadeira antecipação do mérito.

À guisa de amostra, convém relembrar um famigerado caso apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Habeas Corpus (HC nº 88.514), manejado contra decisão de pronúncia proferida por uma magistrada de Santa Catarina, a qual, entre outras expressões, afirmou “que o homicídio foi praticado pelos réus”; que “são veementes os indícios da autoria do delito […]”; e que “toda a prova converge no sentido de indicar que os réus dispararam contra a vítima […]”.

A questão alusiva à eloquência acusatória é problemática porque, como é cediço, o art. 472, parágrafo único, do CPP, determina que os jurados recebam cópias da decisão de pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. Conseguintemente, eventual excesso de linguagem poderá impactar o convencimento dos juízes leigos, altamente suscetíveis de serem influenciados pelo entendimento de magistrados togados.

A medida processual cabível contra a decisão de pronúncia, incluindo, por óbvio, os casos de excesso de linguagem, é a interposição de Recurso em Sentido Estrito, nos termos do art. 581, IV, do CPP. Acaso seja dado provimento ao recurso para o fim de anular a pronúncia atacada em razão da existência de eloquência acusatória, qual destino deve ser dado a essa decisão maculada?

O questionamento acima esboçado tem enorme relevância prática, na medida em que o CPP, em seu art. 480, §3º, autoriza o acesso aos autos pelos jurados, bastando, para tanto, que eles solicitem ao juiz presidente. Assim, de nada adiantaria a declaração de nulidade da pronúncia se ela permanecesse nos autos, podendo ser livremente acessada pelos jurados.

Acerca da matéria, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimentos anuindo com a possibilidade de serem rasurados, em respeito ao princípio da duração razoável do processo, trechos de decisão de pronúncia contendo excesso de linguagem, desde que ínfimos, afastando-se a necessidade de tornar nula toda a decisão (STJ, AgRg no AREsp 1452839/GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. em 02/06/2020, DJe 15/06/2020; HC 325.076/RJ, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, j. em 18/08/2016, DJe 31/08/2016).

Malgrado seja respeitável o posicionamento adotado pelo Tribunal da Cidadania, ele não resolve o problema posto em discussão no artigo vertente. Ao revés disso, cria novos embaraços.

Isso porque, como adverte Campos (2021, p. 347), não se deve admitir “que um documento público – como uma decisão judicial – tenha trechos seus rasurados”. Ademais, como já pontuou o STF, “a mera exclusão das expressões tidas como excessivas pode acabar por descontextualizar o texto da pronúncia (HC 99.834, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª T, j. 15/02/2011). Portanto, a rasura de trechos da pronúncia contendo excesso de linguagem é insuficiente, ainda que eles sejam ínfimos.

Diante deste cenário, a melhor solução passa pela necessidade de, além de tornar nula a integralidade da decisão de pronúncia eivada do vício em estudo, desentranhá-la dos autos – evitando a possibilidade de contaminação dos jurados –  bem como ordenando seja proferida nova decisão. Atento a essa lógica, o STF já decidiu o seguinte:

[…] Reconhecido o excesso de linguagem da pronúncia, causa de nulidade absoluta, cumpre anulá-la, determinando-se que outra seja prolatada, não sendo suficiente o desentranhamento e o envelopamento da decisão, em atenção ao parágrafo único do artigo 472 do Código de Processo Penal e à vedação aos pronunciamentos ocultos. (STF, RHC 127522, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 18/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-214 DIVULG 26-10-2015 PUBLIC 27-10-2015) – grifei

Uma vez seguido o roteiro em comento, resta claro que, em plenário, as partes não poderão fazer referência à decisão de pronúncia invalidada como um “argumento de autoridade”, em exegese semelhante àquela extraída do art. 478, I, do CPP, pois a tendência natural é que o excesso de linguagem nela existente influencie o convencimento dos jurados (CAMPOS, 2021, p. 348).

Por fim, a mesma cautela (quanto à linguagem) empregada pelo magistrado ao proferir a decisão de pronúncia deve ser verificada na decisão de impronúncia (art. 414 do CPP.

Até porque, o art. 478, I, do CPP, veda, somente, a alusão, como argumento de autoridade em plenário, da decisão de pronúncia. Logo, caso a Apelação do Ministério Público seja provida, não há, em tese, óbice normativo para que a Defesa faça menção à impronúncia inicialmente proferida, o que também pode provocar impactos sobre o convencimento dos jurados (CAMPOS, 2021, p. 393).

Por isso, não pode o juiz, utilizando-se de argumentos próprios de absolvição, impronunciar o réu; dizendo, por exemplo, “que a acusação é um erro”; notadamente porque, enquanto no primeiro caso a controvérsia penal é encerrada, tendo o seu mérito apreciado, na segunda hipótese surge, nos dizeres de Lopes Junior (2020, p. 1269), “um estado de pendência”, de duvidosa constitucionalidade, porquanto o réu não se encontra nem condenado nem absolvido, podendo o processo ser reaberto a qualquer momento, enquanto não extinta a punibilidade.


REFERÊNCIAS

CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do Júri / Walfredo Cunha Campos. 7. ed. Leme: Mizuno, 2021.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal [livro eletrônico]. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.


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