As doenças da execução penal e o surto do coronavírus
Por Ana Luíza Teixeira Nazário e Paulo Ricardo Suliani
As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre”. (Ministro Marco Aurélio)
Ainda que entre aqueles que se filiam às teorias legitimadoras da pena não haja consenso entre serem as finalidades da pena privativa de liberdade a mera retribuição de um mal ou (também ou excludentemente) a ressocialização do preso, é consabido que o cárcere, notadamente o brasileiro, possui características doentias.
Tanto é veraz que o Supremo Tribunal Federal assim reconheceu ao declarar, pela sistemática da repercussão geral (ADPF n.º 347) um “estado de coisas inconstitucional” em relação à execução penal em nosso país.
É que a Constituição Federal coíbe qualquer pena cruel (art. 5.º, inc. XLVI) e assegura aos presos o respeito à integridade física e moral. De modo mais amplo, trata-se de uma nação constituída a partir do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, impende-se consignar que as peculiaridades da atualidade diante da pandemia do COVID-19 (coronavírus) indicam, pelo menos aos juristas, ter maior atenção quanto à exigência de assistência à saúde do preso, tanto de caráter preventivo quanto curativo, nas searas médica, farmacêutica e odontológica (art. 14 da LEP).
Com efeito, a partir de diversas medidas preventivas para a população livre, todas com o intuito essencial de evitar conglomerações humanas, se volta à realidade prisional brasileira em que a superlotação é uma realidade, assim como é a ausência da assistência promulgada pelo Poder Constituinte (e pelo próprio legislador ordinário, ao depois).
De acordo com o estudo “Sistema Prisional em Números”, divulgado em agosto de 2019 pelo Conselho Nacional do Ministério Público, o Brasil tem uma taxa de superlotação carcerária de 166%, isto é, são 729.949 presos, sendo que existem vagas em presídios para 437.912 pessoas.
Verifica-se que, enquanto o Estado do Rio Grande do Sul determinou a limitação de visitas e o cancelamento de audiência com presos sem qualquer atenção para os excessos de população prisional o Estado de Minais Gerais definiu recomendações permissivas de que aqueles que cumprem penas em regime semiaberto possam seguir o fazendo em seus domicílios, assim como determinou quarentena para os novos apenados. Em São Paulo, por seu turno, diante da inexistência de medidas que levem em conta a superlotação, houve rebeliões, motins e fugas.
Veja-se, aliás, que no fechado regime do Irã fora determinada a libertação provisória de milhares de presos em razão das condições de seus cárceres.
Nesse diapasão, é essencial se verificar que não foi decretado estado de sítio tampouco se está, formalmente, rejeitando os princípios democráticos e republicanos, de sorte que medidas como a prisão domiciliar ou a prestação de medidas profiláticas e curativas ensejam restem assegurados os direitos fundamentais daqueles que tiveram apenas a liberdade, e não a dignidade tolhidas por sentença criminal transitada em julgado ou por decretação de prisão preventiva.
Essas, aliás, são medidas previstas na própria legislação (arts. 14, § 2.º c/c 146-B, IV da LEP), e vão ao encontro de uma exegese que presta homenagem à ordem constitucional.
Afinal, se o preso, antes da pandemia, já sofria de condições sub-humanas de existência, ensejadoras de diversas doenças pulmonares (e outras muitas), com a atual realidade o isolamento total do “resto de nós” mostra-se como uma ideia de que serão deixados para adoecer e morrer, desde que não contaminem os demais.
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Não nos esqueçamos de que o índice de tuberculose – grupo de risco do covid19 –, por exemplo, é trinta vezes maior entre pessoas presas do que na população geral. Consoante dados do Ministério da Saúde e pesquisas da Fiocruz, enquanto a média de registros de tuberculose na população total do país é de 32 a cada 100 mil habitantes, a média na população carcerária é de 932 infectados por 100 mil.
Ora, se o Poder Judiciário suspendeu todas as audiências e prazos, o que o torna mais digno de saúde do que aquele que não foi condenado à contaminação, e sim a uma pena criminal?
Resta claro que estamos tratando de privação de dignidade e não somente de liberdade, ocorrendo evidente afronta à norma constitucional que determina ao Estado e a seus agentes o respeito efetivo à integridade física da pessoa sujeita à custódia do Poder Público (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal). Ademais, o art. 40, da LEP, exige de todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios, sendo que o direito à saúde vem reafirmado no art. 41, VII, do mesmo diploma legal.
O Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, estatui que “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes” e que “toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”, portanto, os apenados devem, irrestritamente, assim ser tratados.
Inquestionável é que o momento impende não um isolamento de todas as críticas que há muito tempo tem sido feitas sobre a natureza e as finalidades das penas, e sim um olhar mais atento em tempos de crise, permissivo de (re)questionar a realidade do país. Não se olvide, outrossim, que a “clientela” do sistema penal é notadamente negra e pobre (segundo dados do INFOPEN 2017, pessoas pretas e pardas totalizam 63,6% da população carcerária nacional), de sorte que da forma que a nação trata seus excluídos é possível se ver sua verdadeira faceta.
O óbvio, em tempos sombrios, certamente precisa ser dito: se os direitos humanos não são erga omnes, não são direitos humanos.
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