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As meninas

Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam, Traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial frequentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resisti e resisti também às surras que me abririam um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choques em mim mesmo e em meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-de-arara:  amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos, mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido às algemas, minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas. (TELLES, 1973, pgs. 148-149).

Publicado em 1973, no auge da ditadura militar brasileira, As meninas, romance de Lygia Fagundes Telles, acompanha a jornada de três jovens universitárias, Lorena, Lia e Ana Clara. O único ponto em comum entre as personagens é o fato de morarem em um pensionato de freiras em São Paulo-SP. O tempo real do romance é indefinido pelo narrador, mas o vai-e-vem dos pensamentos das jovens permite traçar suas vidas até aquele ponto específico, que culmina na tragédia da overdose seguida de morte de Ana Clara.

Lorena Vaes Leme é uma jovem burguesa estudante de Direito. O pai da moça está em um sanatório. A mãe fútil vive um romance com um homem mais jovem, que só estava interessado em seu dinheiro. Um de seus irmãos é diplomata no exterior. Outro, em uma tragédia familiar, morreu ainda criança, do tiro que o outro irmão (acidentalmente? Proposital?) lhe deu na fazenda em que moravam. Em meio a esses conflitos, Lorena vai morar no pensionato. Seu quarto é o mais luxuoso, pelo status de sua família. Seus amigos da faculdade e colegas do pensionato gravitam ao seu redor, mas a moça sente-se solitária e frágil. Acaba se envolvendo com um homem mais velho e casado, médico em um hospital. Inteligente, vive em sua “concha cor-de-rosa”, seu luxuoso quarto do pensionato, ouvindo seus discos e lendo seus clássicos, enquanto a faculdade está em greve.  Não participa de nenhum grupo político da faculdade, o que faz com que Lia a julgue alienada. Tem pleno conhecimento da gravidade da situação do país; teme por Lia e seus amigos militantes.

Lia de Melo Schutz, jovem nordestina, filha de mãe baiana e pai alemão, perdeu o ano de Ciências Sociais por faltas. Faz parte de um grupo de esquerda militante, no qual seu nome é Rosa, em homenagem à Rosa Luxemburgo. Seu namorado, Miguel, está preso, mas será libertado em uma troca de prisioneiros. O destino dos dois será o exílio na Argélia. O narrador deixa subentendido que Lia vem de uma família simples, com poucos recursos. Lia não liga para roupas bonitas ou para sua aparência. No fundo, embora não confesse e sua inteligência e segurança não deixem perceber, considera-se feia.  Por isso, apesar de bastante próxima de Lorena, por vezes se irrita com os hábitos refinados da jovem, suas roupas, seus luxos de garota rica.

Das três jovens, Ana Clara é a mais trágica. Alta, ruiva, de olhos verdes, aspirante a modelo, para todos a moça é apenas uma viciada em drogas, namorada de um traficante, tão viciado quanto ela. Sem pai, criada por uma mãe relapsa que colecionava casos e apanhava de todos, a garota foi abusada sexualmente na infância. Em seus delírios de drogada, sempre lhe volta a imagem do abuso, cometido pelo seu dentista, a quem chama ironicamente de “Doutor Algodãozinho”.  Depois que a mãe morre, perde o chão de vez. Tem casos com homens por dinheiro, afunda no vício, não paga o pensionato, tranca a faculdade de psicologia. Lorena e Lia tem pena dela, mas a única que tem afeto de verdade pela moça é a generosa Madre Alix. A madre aconselha a moça a se internar, a tratar seu vício, Ana faz promessas, mas afunda cada vez mais, até o seu destino trágico. Para Madre Alix, a moça conta seu passado trágico, mas a bondosa madre nunca sabe se ela está sendo honesta ou inventando estórias para que tenham pena dela. De toda forma, sempre está de braços abertos para receber Ana de volta.

Em poucos dias de enredo, em que os pensamentos das personagens dizem mais sobre elas do que o narrador, a estória se desenrola. Lia tem a notícia da libertação de Miguel, e prepara-se para embarcar junto com ele para Argélia. Lorena lhe ajuda com dinheiro e roupas para a viagem. Antes do adeus definitivo, sabendo da futilidade da mãe de Lorena e da insegurança da moça, Lia lhe aconselha a deixar definitivamente seu caso sem futuro com o médico casado, Marcus, e dar uma chance a Guga, jovem amigo de Lorena que deixou a faculdade para ser hippie e tocar em uma banda. Mesmo com suas diferenças de vida e personalidade, Lia e Lorena se tornam grandes amigas, e o adeus é sofrido para as duas.

Em meio aos preparativos para a viagem de Lia e as despedidas, Ana Clara surge no quarto de Lorena em plena crise de overdose. Ela morre, mesmo com as tentativas débeis de primeiros socorros de Lia e Lorena. Sem saber o que fazer, com medo de chamarem a polícia em plena ditadura militar, as jovens tomam a decisão de deixar o corpo abandonado em uma praça, para ser encontrado por terceiros.

Depois da tragédia da morte de Ana Clara e da partida de Lia, Lorena decide deixar o pensionato e voltar a morar com sua mãe, que havia se separado do namorado. Lia parte em um navio para o exterior.

Além da ousadia de tocar em questões politicas,  “As meninas” é um grande romance por aprofundar no psicológico de três jovens mulheres, sem medo de censura ou moralismo. “As meninas” fala abertamente de sexualidade, drogas, política, das dores do crescimento e das tragédias pessoais de suas três protagonistas.

REFERÊNCIAS:

TELLES, Lygia Fagundes. AS MENINAS. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Pedro Ganem

Redator do Canal Ciências Criminais

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