ArtigosCriminologia

As minorias, suas vulnerabilidades e a Criminologia: uma perspectiva latino-americana

A América Latina é caracterizada pela existência de um verdadeiro abismo socioeconômico onde muitos têm muito pouco e pouquíssimos têm muito. Há discursos que culpa o modelo religioso com prevalência do catolicismo e outros que culpa a forma de colonização (exploração) proveniente das políticas monárquicas da península ibérica.

Pois bem, contra tais ilações podemos dizer que o argumento colonial-exploratório tem grande relação de causalidade com o modelo socioeconômico mas o que temos de herança nefasta é o racismo. O racismo impregnou de tal forma nossa sociedade que acabou sendo assimilado e tornando-se estrutural, reproduzindo o modelo colonial escravagista de forma velada e sob o auspício do sistema legal. A sociedade evoluiu fazendo de conta que o racismo foi superado com a abolição da escravatura.

Os direitos humanos foram responsáveis pelo processo de transformação e de atualização permanente dos direitos estabelecidos na Constituição, o que é resultado de relação dialética e dinâmica com as demandas da realidade em escala mundial, regional e local, dos processos de globalização, mas também da articulação cada vez maior dos sistemas constitucionais nacionais com o sistema internacional de proteção dos direitos humanos no contexto daquilo que se convencionou designar de um constitucionalismo de múltiplos níveis (FERRAZ, BAPTISTA e FREITAS, 2016, p. 23).

A América Latina não se contrapõe a esta regra. Tal região do continente americano tem sido palco de inúmeras inovações constitucionais, muito em razão das diversas demandas sociais que surgiram nos últimos anos, principalmente no âmbito dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, tanto é assim que, entre os doutrinadores, pauta-se constantemente o termo “novo constitucionalismo latino-americano”. Dentre tais obstáculos, pode-se apontar, como o mais intenso e árduo, o respeito e a proteção das minorias, sendo elas: indígenas, afrodescendentes, deficientes, religiosas, LGBTQIA+, entre outras (gênero, idade, etc.). Diante disso, far-se-á, uma análise das minorias nas constituições dos principais países da América Latina, a começar pela Argentina.

A “Constitución Nacional Argentina”, de 1853, é formada por 129 artigos divididos em duas partes: a primeira trata das Declarações, Direitos e Garantias, enquanto a segunda da organização do Estado. A Carta Magna argentina fica entre a prolixidade e a redundância e, à vista deste meio termo, o princípio da igualdade e os direitos das minorias são dispostos de maneira dispersa, ainda que bastante englobante, já que, além de positivar algumas garantias e prerrogativas de grupos vulneráveis, como, por exemplo, indígenas, estrangei­ros, mulheres, idosos e deficientes, incorpora os dispositivos dos Tratados Internacionais de direitos humanos na própria Constituição Nacio­nal e se complementa, ainda, com legislação especial.

Cumpre salientar, ainda, que além da legislação escrita, o artigo 33 da “Constitución Nacional Argentina” trata daqueles direitos não explícitos na Carta Magna, mas que advêm de princípios de princípios e valores da soberania do povo e do sistema republicano de governo. Incluem-se, nessa esfera, o direito à vida, à saúde, à cultura, entre outros.

A título de curiosidade, faz-se necessário destacar o artigo 15 da Constituição argentina, que estabelece que não há escravos no país. Vejamos:

En la Nación Argentina no hay esclavos: los pocos que hoy existen quedan libres desde la jura de esta Constitución; y una ley especial reglará las indemnizaciones a que dé lugar esta declaración. Todo contrato de compra y venta de personas es un crimen de que serán responsables los que lo celebrasen, y el escribano o funcionario que lo autorice. Y los esclavos que de cualquier modo se introduzcan quedan libres por el solo hecho de pisar el territorio de la República.

Já no Brasil, os direitos das minorias encontraram, pela primeira vez, acolhimento na Carta Magna de 1988. Nota-se a inegável preocupação do constituinte com a proteção de direitos e a correção de desigualdades sociais, e em consequência, a proteção de minorias, o que fica evidente desde as disposições contidas no Título I da Constituição de 1988, no qual são elencados os princípios fundamentais que devem reger o Estado Democrático Brasileiro, então em reconstrução, após o longo período de exceção constitucional (FERRAZ, BAPTISTA e FREITAS, 2016, p. 67).

Os fundamentos basilares de proteção dos direitos das minorias – genericamente falando – situam-se, em especial: nos incisos II e III do art. 1º, que, asseguram a cidadania e a dignidade da pessoa humana; e no art. 3º, que estabelece serem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária (I), garantir o desenvolvimento na­cional (II), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (III), e promover o bem de todos, sem preconceitos de ori­gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (IV).

Apesar de disposições iniciais genéricas, a Constituição de 1988 tutela, notadamente, de vários grupos de minorias. É possível dizer, portanto, que os fundamentos utilizados pelo constituinte para definir e igualizar, com tratamento especial, minorias, leva em consideração diversos fatores, tais como: étnicos, gênero, deficiências físicas, idade avançada, entre outros.

Na Bolívia, as mudanças sociais mais profundas ocorreram somente após a promulgação da Constituição de 2009, aprovada após a eleição de Evo Morales, em meio a um ambiente oportuno para transformações intensas na realidade econômica, política e social do país. Tanto é assim, que Afonso Magalhães dispõe:

Dos 411 artigos que compõem a Carta Fundamental boliviana, 80 são destinados à questão indígena. A equivalência da justiça indígena com a justiça institucionalizada; a garantia da representação dos povos originários no parlamento; a reorganização territorial do país (…); e o reconhecimento dos direitos de família e propriedade de cada povo originário, são alguns dos pontos essenciais do novo projeto constitucional (AFONSO e MAGALHÃES, 2011, p. 466).

Em seu preâmbulo, a nova constituição afirma que outras “formas de Estado” anteriores, vigentes no período colonial, durante a República e durante a aplicação das reformas neoliberais, reforçaram o racismo e a desigualdade presente na sociedade boliviana. Para o governo de Evo Morales tratava-se de reverter “colonização interna”, pois as constituições anteriores ignoraram a existência de um país plurinacional (FERRAZ, BAPTISTA e FREITAS, 2016, p. 130).

Sobre o tema, Gladstone Leonel da Silva Junior aduz:

O pluralismo destaca-se como atributo central da Constituição boliviana. (…) Esta caracterização plural, ao tratar da diversidade étnica, afirma a alteridade dos povos latino-americanos. A própria análise do contexto político do processo constitucional demonstra isso. Não é mera retórica de igualdade constitucionalista entre os diferentes, distinguindo-se de outros processos históricos em que o pluralismo foi considerado a partir de um enfoque multicultural, ou seja, dentro da ordem estabelecida (DA SILVA JUNIOR, 2014, p. 190).

Percebe-se, portanto, que o cerne da Constituição boliviana de 2009 é a busca pelo equilíbrio de classes através do anseio de contornar qualquer ruptura mais profunda, bem como pela tentativa de abrir caminhos para um desenvolvimento econômico pela via das reformas. As expectativas revolucionárias que circundavam a eleição do governo Morales, juntamente com as supracitadas disposições, exigiram, ainda, a construção de uma nova ideologia.

Quanto ao Peru, país que tem como característica principal a multiculturalidade, a consagração do direito das minorias veio com a promulgação do texto da Constituição Política do Peru, promulgada em 29 de dezembro de 1993, popularmente conhecida como “norma fundamental de la República del Perú”. Os principais artigos que se correlacionam ao tema em questão são: art. 2º, incisos 2, 8 e 19; art. 17; art. 48; art. 89; art. 149 e art. 191.

A fim de compreender melhor o contexto em que se enquadra a Constituição peruana, é imprescindível discorrer acerca do termo “multiculturalismo” que, na análise de MANCHEGO (2014, p. 761), pode se apresentar mediante distintas perspectivas: há quem sustente referir-se à convivência com diversas culturas; outros sustentam que não se refere à diferença, mas, que uma cultura se submete à outra e é por esta sustentada; há ainda a posição de que se trata de diversidade cultural ou diferenças culturais, considerando que existem ainda outras diferenças; ou ainda, na maioria, há o entendimento de que é um termo vinculado às diferentes culturas presentes numa sociedade, em que a coexistência se manifesta na convivência de grupos procedentes de âmbitos culturais diversos.

É importante salientar que o ordenamento jurídico peruano baseia-se, sobretudo, nas comunidades campesinas e nativas, que são as únicas entidades nacionais com personalidades jurídicas reconhecidas, fato este que lhes atribui autonomia organizativa, administrativa e econômica. Doutrinariamente, muitos posicionam os povos indígenas e originários no mesmo patamar que as comunidades campesinas e nativas, ainda que não exista predisposição legal.

Percebe-se, por conseguinte, que a Constituição Política do Peru reconhece a sociedade multicultural e multiétnica do país, garantindo, principalmente, os direitos das Comunidades Campesina e Nativa, bem como dos povos originários, munindo-os com dispositivos legais que promovem sua proteção e preservação, através do respeito aos direitos fundamentais e direitos humanos.

Temos a “Constitución Política de la República Oriental del Uruguay” (CPROU), de 1967, que aborda, basilarmente, noções sobre os princípios jurídicos e os direitos e obrigações do Estado. Tanto é assim, que a Carta Magna uruguaia dispõe que o “objetivo último perseguido pelo Estado é o de garantir a todos os seus habitantes o pleno desenvolvimento da personalidade, mediante a proteção dos seus direitos à vida, à saúde, à liberdade, à educação, à seguridade social, no marco de um Estado Democrático de Direito”. O referido texto encontra-se disposto no art. 1º do ordenamento constitucional uruguaio e é bastante semelhante com aquilo apontado no caput do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.

A Constituição uruguaia de 1967 passou por reformas em 1989, 1996 e 2004, o que trouxe ao seu cerne disposições que permitiram ao Uruguai cruzar anos de autoritarismo, em que liberdades, garantias e direitos foram bruscamente violados. Visando a proteção das minorais, a fim de que não ocorram transgressões, sobressaem, dentre outros relevantes princípios jurídicos do ordenamento constitucional uruguaio: a) o do respeito à dignidade da pessoa humana; b) o da igualdade; c) o da liberdade; d) o da criança e do adolescente.

A experiência acumulada pelo povo uruguaio no tocante ao período ditatorial serviu de inspiração à busca de novos direitos que lhes garantissem, sobretudo, a dignidade de cada um e de todos (FERRAZ, BAPTISTA e FREITAS, 2016, p. 232). Tanto é assim que, um dos maiores efeitos da Constituição uruguaia de 1967, são as inúmeras leis que foram promulgadas após a sua vigência, objetivando, mormente, a defesa de garantias e direitos do cidadão uruguaio que integra alguma minoria, já que, historicamente, este, em especial, possui sequelas dolorosas do autoritarismo.

Diante das breves análises constitucionais tratadas conclui-se que as frequentes lutas sociais dos países latino-americanos foram sufocadas por ciclos autoritários ao longo da história. O término de longos períodos ditatoriais fez emergir as manifestações por direitos democráticos, principalmente aqueles referentes aos grupos minoritários, sendo estes estampados, ainda que a curtos e lentos passos, nas atuais cartas constitucionais de cada país.

A necessidade de se estabelecer estudos criminológicos próprios a nossa realidade e distantes dos discursos do hemisfério norte é premente. Assumir um discurso criminológico realista e marginal é o que trará resposta mais evidentes ao problemas criminais que enfrentamos.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Fernanda Dias de Menezes de. Comentários ao art. 24, XIV da CR. In CANOTILHO, J. J. Gomes, MENDES, Gilmar Ferreira, SARLET, Ingo Wolfgang. STRECK, Lenio Luiz (Coordenação científica), Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A revolução boliviana. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Saraiva, 2004.

DA SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. A Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia como um instrumento de hegemonia de um projeto popular na América Latina. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, para a obtenção do título de Doutor em Direito. Brasilia, UNB, 2014.

DIDIER, Maria Marta. El principio de igualdad en las normas jurídicas: Estudio de la doctrina de al Corte Suprema Argentina y su vinculación con los estándares de constitucionalidad de la jurisprudencia de la Corte Suprema de los Estados Unidos. Buenos Aires: Marcial Pons, 2012.

FERRAZ, Anna Candida da Cunha; BAPTISTA, Fernando Pavan; FREITAS, Riva Sobrado. Direitos das minorias na América Latina e no Caribe: perspectiva convencional e jurídico-constitucional. Osasco: EdiFieo, 2016.

MANCHEGO, José F. Palomino. La constitución multicultural peruana. Rio de Janeiro: Revista Quaestio Iuris, 2014.

Leia também:

Projeto de lei proíbe a concessão de liberdade de presos, nos finais de semana e feriados


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.

Rodrigo Murad do Prado

Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Mestre em Direito. Criminólogo. Defensor Público.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo