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As misérias da Execução Penal (Parte 3): a produção de ‘delinquentes’ não se dá por acaso!

Por Mariana Py Muniz Cappellari

Na semana passada, ao final do texto, deixei um questionamento aos leitores e as leitoras que entendo fundamental à compreensão das misérias da execução penal, qual seja: a quem ou ao que interessa a criação de delinquentes econômica e politicamente falando? Com isso, tinha por ideia instigá-los e induzi-los a refletir sobre o tema. Pois bem, vejamos.

A sempre recente e tradicional obra Punição e Estrutura Social de Rusche e Kirchheimer[1] dá conta do nascimento das prisões como forma especificamente burguesa de punição, na passagem ao capitalismo; razão pela qual os autores irão atentar para o chamado princípio da less eligibility, o qual se baseia no pressuposto de que as condições de vida no cárcere e as oferecidas pelas instituições assistenciais devem ser inferiores às das categorias mais baixas dos trabalhadores livres, de modo a constranger ao trabalho e a salvaguardar os efeitos dissuasivos da pena.

Também Wacquant[2] irá nos demonstrar, tendo por análise os Estados Unidos da América, uma evidente mudança de procedimento e de resultado, no que diz com os propósitos da pena de prisão, a qual irá redundar no abandono do ideal de ‘reinserção’, passando a pena a servir apenas como instrumento ao isolamento e a neutralização de categorias ‘ditas’ como desviantes ou perigosas. A prisão como mero mecanismo de restauração da ordem e de julgamento dos problemas sociais.

Historicamente, talvez possa se dizer que o problema da superlotação carcerária ou da ausência de vagas no sistema prisional brasileiro data do século XIX. Recentemente, no entanto, mais precisamente em data de 03 de junho de 2015, circulou pela internet[3] dados provenientes de pesquisa realizada pela Secretaria-Geral da Presidência da República e pela Secretaria Nacional de Juventude, o chamado Mapa do Encarceramento – Os Jovens do Brasil -, dando conta de que entre 2005 e 2012 a população prisional do Brasil cresceu 74%.

Nem precisa se dizer que a superlotação carcerária encontra-se umbilicalmente vinculada a diversas violações de direitos humanos no âmbito da execução da pena de prisão, revelando a mais absoluta degradação e desumanidade, diante da ausência de uma estrutura mínima e digna de alojamento dos detentos, valendo lembrar-se de Rusche e Kirchheimer (2004) e do princípio da less eligibility! Uma vez que nada é por acaso!

Semana passada também pontuei os efeitos que são e deveria ser destinado à prisionização, entre eles o social, o qual desponta para a formação de um sistema social anômalo ‘intramuros’, sem descuidar da incapacidade latente dessas instituições (prisionais) poderem minimamente preservar os direitos das pessoas encarceradas, conforme argumenta Carvalho,[4] com a nítida contribuição de Goffman[5] ao revelar o fenômeno da desculturação e da aculturação, concluindo que efeito da prisionização é a mortificação do eu.

Aí, diante de todo esse contexto exsurge a falaciosa, mas sedutora proposta de redução da maioridade penal! Iremos, pois, agora, confinar mais cedo, mais jovens; já que a pesquisa anteriormente referida – o Mapa do Encarceramento – Os Jovens do Brasil – confirma que o perfil do preso no Brasil é jovem, abaixo dos 29 anos de idade, negro e com ensino fundamental incompleto.

Pois é, o que pretendemos com isso? Produzir mais dor? Mais sofrimento? O que precisamos sufocar em nós mesmos que nos faz defensores de tamanha crueldade? Sim, porque nitidamente resta visível que o endurecimento de leis penais ou mais leis penais não contribuem a redução da criminalidade; ínfima esta última, ao analisarmos o contexto dos adolescentes. Só mesmo a irracionalidade pode justificar a pena!

Nesse ponto, Zaffaroni[6] (2012, p. 301) mais uma vez é certeiro ao elucidar o enunciado valendo-se das palavras de René Girard, filósofo francês, o qual, segundo ele é taxativo ao considerar que o poder punitivo formalizado na civilização atual tem por função a busca da canalização racional da vingança, aduzindo que “se nosso sistema nos parece mais racional – escreve -, na realidade é porque está mais de acordo com o princípio da vingança. A insistência sobre a punição do culpado não tem outros significados. Ao invés de nos esforçarmos para impedir a vingança, iludindo-a ou desviando-a para um objeto secundário como todos os procedimentos propriamente religiosos, o sistema judicial racionaliza a vingança, conseguindo subdividi-la e limitá-la como melhor lhe parece; faz dela uma técnica limitadamente eficaz de cura e, secundariamente, de prevenção de violência.”

A canalização da vingança nos chamados bodes expiatórios, nos termos da tese de René Girard, de acordo com Zaffaroni (2012); a formação de um “Eles” como uma massa criminosa de “diferentes”, identificada através de estereótipos, o que tão bem trabalhou a teoria criminológica do labelling approach e atualmente encontramos na chamada Criminologia Midiática, também nas palavras de Zaffaroni (2012); instaura uma fronteira alimentadora de uma violência naturalizada, que segundo o mesmo autor manipula a moral para provocar indiferença moral.

Sustentamos, assim, nossa indiferença pelo sofrimento ‘Deles’, assim como os Estados totalitários sustentaram a indiferença frente ao aniquilamento de inúmeras pessoas (ZAFFARONI, 2012)! Por isso, talvez não esteja enterrada a teoria crítica ou radical da Criminologia, muito pelo contrário, parece-me cada vez mais lúcida a argumentação destes no sentido de que os atos são criminosos apenas porque há interesse por parte da classe dominante em assim defini-los; que a imposição de um rótulo a determinada categoria de pessoas também serve a quem detém os meios de produção e o controle do Estado; que o crime, desta forma, varia de sociedade para sociedade de acordo com cada estrutura econômica e política.

E, assim, pensamos que enquanto a pena servir ao propósito de encobrir o debate político, social e econômico que lhe subjaz, as misérias serão uma constante da execução penal. Talvez seja interessante também refletir sobre isso.

 Até semana que vem!

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[1] RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

[2] WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

[3] Disponível em: <http://www.conjur.com.br>. Acesso em: jun. 2015.

[4] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013.

[5] GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 7. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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