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As novas tecnologias e a concorrência de culpas em Direito Penal


Por Dayane Fanti Tangerino


Inicialmente destaco ao leitor que este tema é, para mim, da maior importância, tendo sido tratado no bojo de meu trabalho de mestrado, concluído em 2015, ainda que de maneira muito menos profunda do que realmente merece. Nesse aspecto, utilizarei o espaço de hoje para trazer à reflexão um pouco desta temática que, se bem compreendida e utilizada, poderá auxiliar, sobremaneira, na solução de algumas controvérsias prático-jurídicas que envolvem os delitos praticados por meio das novas tecnologias.

De plano já devemos destacar que, para que se possa evoluir na discussão deste tema, necessário se faz o abandono da ideia clássica de mera e simples negação da possibilidade de compensação de culpas no direito penal, sublinhando-se que, o termo mais correto, como apontado por MELIÁ (1998, p. 123), é “concorrência de culpas” e não “compensação de culpas”, como normalmente se adota.

Superada, portanto, a ideia de mera negação, passaremos a introduzir o instituto e a analisar sua possibilidade de aplicação prática, em especial no que se refere aos delitos perpetrados por meio das novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC´s).

Como já dissemos em outra oportunidade, a perspectiva vitimológica na dogmática penal é de suma importância para o avanço do estudo dos crimes perpetrados por meio das novas tecnologias, já que são delitos, em regra, em que se verifica claramente uma participação ativa e determinante da vítima para sua ocorrência, sendo que, por isso mesmo, valorar a incidência do comportamento da vítima para a prática do delito é aceitar a aplicação do princípio da autorresponsabilidade ou corresponsabilidade da vítima. E é nessa linha que caminha a ideia central da concorrência de culpas, sendo que a Suprema Corte de Justiça da Espanha, afastando a ideia clássica de negação absoluta da concorrência de culpas, assim explicitou seu posicionamento sobre o tema:

“Em tempos mais recentes, com fundamento em um sentido de justiça, impregnado de equidade, que se rebela contra a tese da absoluta inoperância de um proceder culposo da vítima ou prejudicado, quando este e o do agente acusam um grau de eficiente culpabilidade na produção do evento danoso, abandona a terminologia imprópria de ‘compensação’ e acudindo a de ‘concorrência’ de culpas, fenômeno que se dá sempre que, com o do agente, haja coexistido ou confluído a do ofendido ou das vítimas, contribuindo, concausalmente e em maior ou menor medida, a produção de um mesmo resultado lesivo, a doutrina científica mais caracterizada e a desta Sala indicam que a contribuição da conduta culposa da vítima ou prejudicado á causação do evento danoso influi sobre a qualificação jurídica dos fatos…”. (detacamos) (tradução nossa)

Claro fica, pela leitura do excerto, que se começa a admitir, pois que, em certos casos é preciso valorar no plano causal a concorrência de culpas ou de condutas da vítima e do autor, já que é lícito e necessário que se valore as condutas de todos os protagonistas do fato para sua exata compreensão e para a justa medida da culpabilização – ou não – do agente.

Ora, nos parece bastante óbvia a ideia acima trazida, já que não se pode afirmar que houve um justo julgamento se não se considerou, na produção do evento danoso ou na realização do risco as condutas de todos aqueles que poderiam ter nele influído.

Além disso, se observarmos algumas situações envolvendo os delitos perpetrados por meio das novas tecnologias, veremos, notoriamente, a conduta da vítima como elemento central da produção do resultado danoso. Vejamos:

Pensemos na hipótese atualmente corriqueira do internauta que recebe um email e, verificando desconhecer o remetente, ainda assim, acessa o conteúdo da mensagem, baixando arquivos executáveis em seu computador, colocando em risco seu dispositivo pessoal e o de todos os demais conectados àquela rede.

Outra hipótese bastante divulgada na mídia, mas que ainda faz muitas vítimas, é o caso do internauta que recebe mensagem eletrônica solicitando a ele o envio de informações e dados pessoais a um remetente qualquer (pretenso órgão público, instituição bancária etc). Mesmo desconhecendo o remetente que solicita a mensagem e presenciando diariamente nos meios de comunicação os apelos que órgãos públicos, instituições bancária etc que informam que não solicitam informações por meio de mensagem eletrônica, ainda assim, enviam os dados e informações solicitadas.

Mais um exemplo de situação cujo comportamento da vítima é conditio sine qua non para a verificação do resultado lesivo e o usuário que conecta seu dispositivo móvel (notebook, smartphone, tablet etc) a rede wireless públicas ou de uso coletivo sem possuir no dispositivo qualquer sistema de segurança (antivírus).

Por fim, mas sem esgotar os exemplos, tem-se o caso do usuário que utiliza os serviços de home banking, transferindo informações bancárias, financeiras e dados sensíveis através da web sem qualquer sistema de proteção e segurança instalados em seu computador ou dispositivo móvel.

Nas hipóteses acima apontadas, a omissão, descuido e por vezes “descrença” humana são os motores propulsores do ato criminoso, pois ainda que o delinquente aqui vá se aproveitar da “boa-fé” da vítima, esta “boa-fé” há que ser reinterpretada à luz da sociedade de risco sob a qual se vive.

Há quem defenda que já existe em nossa sistemática penal a consideração da conduta da vítima, que estaria insculpida no artigo 59 do Código Penal que assim diz:

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (…) (destacamos)

A nosso ver, não obstante este artigo do Código Penal tenha em conta o comportamento da vítima na aplicação da pena – o que por si só já demonstra que o papel da vítima deve sim ser observado e considerado de modo ativo – para a aplicação do princípio da autorresponsabilidade da vítima ou da concorrência de culpas é necessário mais que isso, pois pelo teor do artigo 59 referido, o comportamento da vítima somente seria considerado na medição da culpabilidade do agente (aplicação da pena), sendo que o melhor entendimento seria aquele que considera o comportamento da vítima na análise da tipicidade do fato, sendo que a priori a intervenção da vítima poderia gerar a atipicidade do fato; em assim não sendo, ou seja, entendendo o julgador que a tipicidade se faz presente, a conduta da vítima seria considerada uma segunda vez, ai sim, na fase de aplicação da pena para, eventualmente minimizando a culpabilidade do autor.

Assim, acreditamos que tal debate ainda é muito incipiente na doutrina pátria e merece maior atenção dos juristas, estudiosos e aplicadores do Direito, devendo ser objeto de reflexão e acurada análise dos acadêmicos e operadores do sistema jurídico, em especial, jurídico-penal, pelo que propomos um olhar mais objetivo e prático para referido instituto, destacando-se sua possível e eficiente aplicação no que toca aos delitos praticados por meio das NTIC´s.


REFERÊNCIAS

CANCIO MELIÁ, Manuel. Conducta de la víctima e imputación objetiva en derecho penal. Barcelona: Jesús Maria Bosch Editor, 1998.

_Colunistas-Dayane

Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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