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As nulidades como uma permanência autoritária


Por Mariana Py Muniz Cappellari


A doutrina tradicional brasileira ainda se encontra arraigada em uma leitura meramente ordinária do processo penal, não consegue, conforme bem pontua Giacomolli (2014), trabalhar com a constitucionalização e a convencionalização deste instrumento, carecendo, nesse ponto, portanto, do influxo das garantias constitucionais e humanas, o que certamente se denota no âmbito das nulidades.

Isso porque nessa matéria, precipuamente, o Código ainda contém a redação datada do ano de 1941, inexistente qualquer reforma pontual nesse sentido. Aliás, possível se aferir que a ideologia da defesa social, tão presente na exposição de motivos do Código, atravessa o tempo e vem deitar raiz nos operadores do sistema criminal, ainda que pós-redemocratização do país e da vigência da Constituição Federal de 1988.

Tanto isso é verdade que a doutrina ainda opera com quatro categorias no âmbito das nulidades: meras irregularidades, nulidades relativas, nulidades absolutas e inexistência. Interessa-nos, por ora, a conceituação destinada as nulidades relativas e absolutas. Vejamos.

Segundo, então, a doutrina tradicional, as nulidades absolutas seriam aquelas definidas como violação de norma cogente ou de princípio constitucional, que tutela interesse público, razão pela qual pode ser declarada de ofício ou mediante invocação da parte interessada, sendo o prejuízo e o não atingimento dos fins presumidos, revelando-se insanável, pois não se convalida e tampouco é convalidada pela preclusão ou trânsito em julgado, excetuada a sentença absolutória (LOPES JR., 2014).

Por outro lado, as nulidades relativas violariam norma que tutela um interesse essencialmente da parte, ou seja, privado, não podendo, assim, ser conhecida de ofício, dependendo de postulação da parte interessada, convalidando-se com a preclusão, cumprindo a parte interessada na sua declaração a demonstração do prejuízo sofrido (LOPES JÚNIOR, 2014, p. 1167).

A crítica considera imprestável para o processo penal a classificação em nulidades absolutas e relativas (LOPES JÚNIOR, 2014). Isso porque são categorias pensadas e transladadas do direito material civil e da estrutura dos atos jurídicos, para além do direito processual civil. Além disso, não se pode pensar, por exemplo, na conceituação destinada às nulidades relativas, na medida em que não se consegue aferir como no âmbito do processo penal se possa falar em normas que tutelam apenas interesse de parte, privadas, portanto.

Segundo Lopes Júnior (2014, p. 1174), no processo penal, especialmente em relação ao réu, todos os atos são definidos a partir de interesses públicos, pois, estaríamos diante de “formas que tutelam direitos fundamentais assegurados na Constituição e nos Tratados firmados pelo País.”

Ocorre que, para além, do entendimento e da conceituação destinada às nulidades por parte da doutrina tradicional, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem a muito alterando, em parte, os referidos conceitos, imputando, assim, um encargo cada vez maior à defesa e transparecendo, dessa forma, com o amorfismo enunciado por Gloeckner (2013), o caráter inquisitorial destinado as mesmas.

Em pequena pesquisa realizada junto ao site do STF, tendo-se por amostra 10 acórdãos proferidos nos anos de 2013 e 2014, da lavra de diferentes Ministros, revela-se uma quase constante referência ao HC 85.155/SP, cuja Relatoria incumbiu a então Ministra Ellen Gracie, e do qual consta a máxima no sentido de que a demonstração do prejuízo, de acordo com o artigo 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta.

Nesse sentido, trabalha-se com a necessidade da demonstração e da comprovação do prejuízo, que, senão, vejamos na maior parte das vezes se dá por intermédio e suscitação da própria Defesa, no que tange ao descumprimento da ordem de inquirição de testemunhas, nos termos do artigo 212 do CPP, nulidade considerada como relativa (Cf. RHC 122467/SP. Relator Min. Ricardo Lewandowski. DJ 03.06.2014), mas, também, no que diz com a ausência de notificação do denunciado para apresentação de defesa preliminar prevista no artigo 514 do CPP (RHC 122131/MT. Rel. Min. Rosa Weber. DJ 27.05.2014), situação, em tese, que atinge o direito de defesa.

Segue-se na exigência do prejuízo, sem qualquer flexibilidade, com o intuito de afastar o decreto de nulidade de audiência de inquirição de testemunha e da vítima, sem a presença do acusado, haja vista o consenso do advogado (HC 119732/SP. Rel. Min. Rosa Weber. DJ 20.05.2014); bem como na inexistência de citação válida, já que requisitado o acusado, desimportando que a designação do interrogatório se dê na mesma data em que expedida a sua requisição (HC 98434/MG. Rel. Min. Cármen Lúcia. DJ 20.05.2014); e, ainda, na impossibilidade de inversão do interrogatório, a fim de que se realize ao final do procedimento, no caso da Lei de Drogas (HC 122229/SP. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. DJ 13.05.2014).

Na sequência, tem-se que a ausência do acusado na audiência de instrução não constitui vício insanável apto a ensejar a nulidade absoluta do processo, já que justificada a ausência de requisição do réu para a audiência, realizada por meio de carta precatória, por ausência de tempo hábil a tanto (HC 121350/DF. Rel. Min. Luiz Fux. DJ 13.05.2014).

Temerário, no entanto, o entendimento da Suprema Corte, mais adiante, quando, então, denota não ter a Defesa demonstrado prejuízo suficiente a decretar a nulidade do processo, quando a audiência de instrução e julgamento restou realizada por Bacharel em direito não inscrito na OAB, que teria se valido do nome e da OAB de advogado já falecido (HC 120880/MG. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. DJ 01.04.2014).

Entretanto, não cessa o Tribunal em suscitar a hercúlea carga da demonstração do prejuízo, ainda referendando não poder visualizar o que a parte poderia alegar em sede de defesa prévia, quando se refere a sua não obrigatoriedade (RHC 120569/SP. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. DJ 11.03.2014). E, em matéria de Tribunal do Júri, valida reconhecimento por fotografia realizado pela testemunha em audiência, não desqualificando o seu valor, aduzindo que o pronunciamento dos jurados a respeito de matéria alheia ao processo não constitui nulidade (RHC 119815/DF. Rel. Min. Rosa Weber. DJ 25.02.2014).

Por fim, na nossa pequena busca, temos que em sede de atentado violento ao pudor, há mera irregularidade na ausência de inclusão do feito na pauta de audiência afixada no saguão do fórum, quando o advogado restou intimado da audiência e desta participou ao final, após a oitiva de todas as testemunhas de acusação e de uma testemunha de defesa, período em que o réu fazia-se acompanhar de advogado dativo (HC 107882/MG. Rel. Min. Luiz Fux. DJ 12.11.2013).

Em uma remota análise, portanto, o que transparece da pesquisa, é que a conceituação destinada pela doutrina tradicional à categoria das nulidades não subsiste, e assim o é não pela crítica aos referidos conceitos, os quais não se compatibilizariam com o processo penal, mas, sim, pela maleabilidade dada aos mesmos, a qual faz tornar relativas todas as nulidades, ou, ainda, as tornam meras irregularidades.

Chancela-se, assim, o inquisitorialismo e a atuação desenfreada de um Juiz que busca freneticamente cumprir com o programa de uma política criminal meramente punitivista. É que o autoritarismo sempre esteve presente na história brasileira, e, segundo Casara e Melchior (2013), embora as mudanças operadas, a sociedade vem reproduzindo esses caracteres, pois não se verificou uma ruptura histórica capaz de alterá-los. E essa ausência de rupturas, segundo os mesmos autores, encontra reflexos no campo processual penal.

A permanência do Código de Processo Penal de 1941, em que pese às reformas pontuais sofridas, dá conta disso, e, não é por outra razão que Zaffaroni (2013) aduz que desde a Inquisição até hoje os discursos foram se sucedendo com idêntica estrutura, pois, alega-se uma emergência, como uma ameaça extraordinária que coloca em risco a humanidade como um todo, e o medo da emergência é usado para eliminar qualquer obstáculo ao poder punitivo, visto este como única solução para o problema estabelecido, sendo que tudo que se opõe a esse poder é visualizado como inimigo.

Evidentemente, portanto, a permanência dessa potencialidade autoritária e inquisitória encontra total aplicação quando tratamos da matéria nulidades, mormente no âmbito da exigida demonstração do prejuízo, conforme verificamos na jurisprudência produzida pelo Supremo Tribunal Federal, anteriormente.

Isso porque transpor à Defesa esse encargo probatório, na maioria das vezes, diabólico, significa inverter a máxima do estado de inocência, garantia constitucional e humana assegurada pelo artigo 5º da CF/88 e pelo artigo 8º da CADH.

Dessa forma, não há como se dissociar do encargo da demonstração do prejuízo, no âmbito das nulidades, uma tendenciosa carga de inquisitorialidade e de autoritarismo que segue permeando o processo penal brasileiro, em diversas facetas, e que traz no seu bojo, nada mais, nada menos, do que aspirações políticos-criminais de cunho eminentemente punitivo.


REFERÊNCIAS

CASARA, Rubens R R; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro. Dogmática e Crítica: Conceitos Fundamentais. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. Abordagem Conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no Processo Penal. Salvador: PODIVM, 2013.

LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Questão Criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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