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As relações entre sistema punitivo e cárcere em uma sociedade capitalista contemporânea

As relações entre sistema punitivo e cárcere em uma sociedade capitalista contemporânea

Os resultados advindos da transição da criminologia liberal à criminologia crítica indicam que a criminalidade passa a ser observada como realidade social construída por meio de processos de definições e de reação social, e deixa de ser vista tão somente como qualidades inerentes do comportamento do indivíduo, o que, em outras palavras, significa que o crime é um produto social, e não intrínseco ao indivíduo.

Por conseguinte, analisa-se neste vasto contexto estrutural a distribuição do status de desviante ao modelo legal da conduta proibida imposta pela norma penal em paralelo com a crise da instituição carcerária, em que o indivíduo esteja sujeito as relações de poder político e econômico, a partir de uma análise histórica e sociológica da sociedade capitalista em que aquele esteja inserido.

Com base no enfoque para uma moderna sociologia criminal, em que o autor Alessandro Baratta leciona como labelling aproach, passou-se a questionar os próprios mecanismos seletivos do poder punitivo e a própria reação do sistema punitivo. Em vista disso, não se fala mais em criminalidade em si, mas em processo de criminalização que atribui o status de criminoso aos indivíduos que se concentram nos setores mais vulneráveis da sociedade, mediante um duplo modelo seletivo.

Primeiramente, dos bens jurídicos tutelados pela lei penal, que corresponde ao processo de criminalização primária; em segundo, dos sujeitos estigmatizados criminalmente em razão da posição social que ocupam na sociedade, que corresponde ao processo de criminalização secundária ordenado pela intervenção das agências reguladoras de controle social (juízes, promotores, policiais, agentes penitenciários). A criminalidade é, assim, um status negativo desigualmente distribuído na sociedade, de acordo com relações de poder político, econômico e social. (BARATTA, 2011).

Na sociedade capitalista, o nexo funcional que liga os mecanismos seletivos do processo de criminalização encontra-se atrelado a conjuntura de que o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e tende a dirigir o processo de criminalização para formas de desvios típicas das classes socioeconômicas menos favorecidas.

Por derradeiro, infere-se a possibilidade do Direito Penal esteja servindo não como instrumento de garantia contra o poder punitivo do Estado, mas como mecanismo de poder punitivo estatal direcionado para determinada e seletiva categoria de pessoas, ganhando relevo o pensamento de Eugênio Raúl Zaffaroni, quando este afirma:

Diante da absurda suposição – não desejada por ninguém – de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores mais vulneráveis. (ZAFFARONI, p. 27).

Desse modo, o cárcere parece ser resultado de não apenas produzir relações de desigualdade, subordinação, controle, fiscalização e disciplina, mas em fabricar um verdadeiro exército de inimigos internos, mesmo que a prisão seja um reflexo de uma sociedade capitalista desenfreada que nela se exprime uma cultura individualista fortalecida pela máxima ênfase à proteção do patrimônio privado, e, predominantemente, impulsiona a formar indivíduos fadados à criminalidade pelos hábitos e pelo desprestígio com que são marcados pela ânsia punitiva oriunda dela mesma. (FOUCAULT, 2015).

Assim, a título exemplificativo, as inovações recorrentes trazidas pela Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) não parece serem aplicadas para mudar decisivamente a natureza das instituições carcerárias brasileiras – já reconhecidas pelo STF como estado de coisas inconstitucional por meio da ADPF 347 – muito pelo contrário, os institutos de detenção como ocorrem hoje no sistema penal brasileiro produzem efeitos totalmente contrários à reeducação e reinserção do indivíduo na sociedade, e favoráveis à sua estável inserção na corrente criminosa.

Temos repetido que não acreditamos no objetivo ressocializador de qualquer punição. Cometer ou não cometer fatos tidos na lei como típicos parte da decisão pessoal de cada um, pesados os prós e os contras, por isso o desencarceramento pode não contribuir para a ressocialização de ninguém. Não obstante, ao mesmo tempo em que na prisão não há nenhum re, nem ressocialização, nem reintegração, nem reeducação, é fato notório que na prisão há vários des, dessocialização, desumanização, despersonalização e destruição, todos evidentemente afrontando diariamente o fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana. (VALOIS, p.152/153).

Desse modo, a esperança de ressocialização vista na norma penal esbarra-se na necessidade do sistema em manter estável os setores marginalizados com mecanismos de acumulação capitalista, sendo de difícil reparação enfrentar o problema da marginalização criminal sem incidir na estrutura da sociedade capitalista, que tem, por motivos ideológicos e econômicos, necessidade de conter a tensão das massas marginalizadas.

Ao que tudo indica, com a tendência em negar os aspectos ligados ao fenômeno da criminalidade – tendo em vista que a única “solução” encontrada seja privar o indivíduo de sua liberdade, mesmo com conhecimento da ineficiência das instituições carcerárias em garantir seu papel singular de reintegração social – o grande dilema contemporâneo que se faz emergir é buscar solução por outras vias que sejam menos danosas para o indivíduo infrator como para a própria sociedade, com a necessidade do Direito servir-se de políticas públicas integradas e mais efetivas, partindo de uma análise histórica e atual dos mecanismos e das funções do sistema punitivo.

Assim sendo, impõe-se refletir em uma necessária política criminal alternativa, vista, em sentido amplo, como uma “política transformação social e institucional” (BARATTA, 2011, p.201), levando em consideração o pleno desenvolvimento para uma democracia mais igualitária, de formas de vida mais civilmente humanitárias, e da superação das relações desiguais de produção de uma sociedade capitalista contemporânea.


REFERÊNCIAS 

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Renavan: Instituto Carioca de Criminologia. 6ª ed, 2019.

FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collége de France (1972-1973); tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D’Plácito, 2019.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


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Eliseu Rogério Hoepner Júnior

Graduado em Direito pela Faculdade CNEC e Pós-graduando em Ciências Criminais (ULBRA)

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