Artigos

As vítimas de Jack, o Estripador


Por Vitor da Matta Vívolo


No décimo sexto dia de outubro de 1888, uma embalagem de sete por sete centímetros endereçada a George Lusk, presidente do Comitê de Vigilância de Whitechapel, foi entregue pelos serviços postais londrinos. Dentro dela havia metade de um rim humano, preservado em vinho, e uma carta com os dizeres:

“Do Inferno

Sr Lusk

Sinhor te envio metade do rin que eu tirei de uma mulier

prezervei pra você. o otro pedaso eu fritei e comi. tava muito bon

posso ti mandar a faca sangrenta que tirou ele se você isperar mais um poco

Assinado               Me pegue cuando puder sinhor Lusk”

O fragmento orgânico anexo foi examinado, constatando sua origem como humana. Dr. Thomas Openshaw, responsável pela curadoria patológica do acervo do London Hospital, determinou que o rim provavelmente pertenceu a uma mulher de quarenta e cinco anos, mostrando sinais de alcoolismo e da doença de Bright em estágio avançado. Tais dados tornavam-no compatível com o cadáver eviscerado de Catherine Eddowes, meretriz encontrada morta há mais de duas semanas numa madrugada em Mitre Square. Suas anáguas arregaçadas e embebidas em sangue,  seu ventre às avessas, o pescoço talhado de orelha a orelha.

O autor do crime exibia um crescendo audacioso e exibicionista. No intervalo de uma hora de antecedência, acabara de assassinar a prostituta Elizabeth Stride seccionando profundamente sua garganta. Ambos homicídios distanciavam-se em cerca de um quilômetro e meio. A região era cercada pelo vai-e-vem do notívago submundo inglês: bêbados frequentadores dos pubs, prostitutas, paupérrimos proletários, pedintes, policiais…  O desafio de deslizar incognito, aparentemente, não lhe causou impedimento algum. A cidade de Londres, mãe da multidão anônima do conto de Edgar Allan Poe, desde a madrugada de 31 de agosto daquele ano havia transmutado-se em palco para um espetáculo sanguinolento cujo protagonista todos desejavam identificar.

A coadjuvante estreante dizia-se ser Mary Ann Nichols, também integrante das  pobres “mulheres da vida” (o uso irônico da linguística, que nos permite mascarar estigmas sociais através dos eufemismos, remonta séculos passados). Miserável e alcoólatra, era mais uma frequentadora dos albergues nas gélidas noites em Whitechapel. Este núcleo de East End, o lado desafortunado da capital britânica, era abrigo a toda parcela social pertencente à escória hierárquica do império vitoriano. Não é à toa que se tornou berço ideal para os homicídios de um psicopata. Que importa que morressem aqueles cuja existência ninguém desejava reconhecer?

As tragédias de Mary Nichols – a primeira – e de Anne Chapman – a vítima seguinte, morta da mesma forma: asfixiada, degolada, estripada… – deram início a uma assombração nas mentes vitorianas. Whitechapel, já famigerada, agora ganhara notória visibilidade nos jornais britânicos. Além disso, o aumento das taxas de alfabetização fazia com que os escândalos circulassem com maior facilidade. As historietas de terror, tomadas como entretenimento desde o advento dos “Penny Dreadfuls” (publicações semanais de baixo custo, tomadas pejorativamente como “literatura popular” à época, cuja ficção retratava aventuras fantásticas e contos de horror), começaram a povoar também a sessão real de obituários.

Oficialmente, cinco mulheres caíram nas mãos e lâminas de um cavalheiro cujos retratos-falados poderiam ser aplicáveis à grande maioria da população masculina de Londres. Curiosamente, as descrições eram sempre acompanhadas de suposições em relação à classe social e profissional do sujeito. Ao longo da investigação, tais teses alimentavam suspeitas a – respectivamente – judeus, estrangeiros, sapateiros, estudantes de cirurgia (cujo prestígio da profissão médica não era sequer similar ao dos dias atuais), açougueiros, magarefes, médicos, marinheiros e católicos. A mentalidade vitoriana, com resquícios de sociedade de corte do Antigo Regime, não podia conceber nenhuma hipótese que traspassasse uma sistematização hierárquica de seus sujeitos: aos olhos da moralidade inglesa, um assassino era inegavelmente inerente a uma de suas camadas “menos privilegiadas”. Quem mais poderia perambular desapercebido pelo baixo gentio de East End senão um membro da própria corja? Homens “de bem” não o fariam.

O furor midiático se alimentava dos mórbidos detalhes, até mesmo forjando informações e cartas do suposto homicida. A carta citada no início deste artigo é uma das poucas cuja veracidade é quase unânime entre estudiosos no tema, entretanto, foi uma de suas desacreditadas concorrentes que cunhou o nome que entrou pra história: “Jack, o Estripador”. Supostamente forjada por um jornalista, uma série de provocações vagas foi enviada à Agência Central de Notícias de Londres em setembro de 1888, iniciadas por “Caro chefe” e finalizadas pelo famoso apelido.

Nunca sendo identificado pela polícia londrina, somente a infâmia de Jack transcendeu o tempo… Até mesmo angariando usos linguísticos em outros continentes, se considerarmos que é usual comentarmos “como diria Jack Estripador, vamos por partes” ao contar uma história. Sua figura é presente em  filmes, video games, quadrinhos, documentários… Curiosa é a pouca visibilidade dada a suas vítimas nestas mídias. Jack é apresentado como uma espécie de super vilão fascinante, cujo sádico voyeurismo da modernidade alimenta.

Inaugurado em agosto do ano passado, um museu sobre Jack e seus assassinatos foi alvo de controvérsia em Londres. Uma aparente apologia aos crimes, a exposição apresenta um típico sensacionalismo mórbido e turístico. Sem uma devida problematização social e da história inglesa, todo o material histórico não transparece nenhum valor intelectual ou humanista. Um ode ao “gore” somente.

Inicialmente, o projeto de obtenção de aval governamental para fundação do museu foi elaborado através de um relatório, que dizia desejar permissão para construção de um espaço de homenagem às mulheres de East End. Discussões sobre hipocrisia à parte, devemos culpar somente a indústria midiática, turística ou capitalista por essa construção deturpada de um lugar de memória?

Convido leitores e leitoras, neste mês de março, “mês da mulher”, a refletir sobre os processos de preservação da memória em nossas sociedades. Não só de atos gloriosos e moralmente dignos de afã é feita nossa História. Da mesma maneira, não apresento aqui as vítimas de Jack como mártires imaculadas. A História é feita tanto de heróis quanto de “degenerados”. Esta última parcela, no entanto, abriga simultaneamente o inesquecível Estripador e as omitidas prostitutas que sangraram em suas mãos. Qual espaço cabe a essas mulheres em nossas lembranças coletivas?

Criminosos e suas vítimas são personagens sociais e históricas, capazes de revelar a época e as práticas do microcosmo que as circunda e abriga. Não deixemos então que, assim como Mary Jane Kelly, última vítima do famoso assassino de Whitechapel, seus semblantes se tornem desfigurados pelas forças violentas do tempo, da sociedade, das mídias… se tornando meramente irreconhecíveis, distantes e atordoantes. É preciso resistir aos esquecimentos.

_Colunistas-VitorMatta

Vitor da Matta Vivolo

Historiador. Mestrando em História. Pesquisador com ênfase no Século XIX e Belle Époque.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo