Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica
Por Fauzi Hassan Choukr
O sistema penal brasileiro conhece, desde a edição da Lei 9685/98, a responsabilização penal da pessoa jurídica tema que, mais que aos processualistas penais, interessou sua análise aos expertos no direito penal material e, em certa medida, à criminologia[1].
Não por outra razão, a literatura produzida sobre o tema (e mesmo antes da edição da lei acima mencionada) basicamente foi dominada pelo enfoque penal material e, em particular neste campo, a aparente infindável discussão sobre a constitucionalidade da responsabilização criminal da pessoa jurídica[2] e a quebra dos paradigmas tradicionais da teoria do crime e da pena uma vez assumida a responsabilização como constitucional, constituindo-se grupos quase que antagônicos sobre esses temas. Residualmente houve alguma abordagem teórica sobre os aspectos processuais[3].
Para além de constituir-se numa mera divagação acadêmica, a ausência da adequada estrutura do processo penal tendo a pessoa jurídica como ré se faz sentir no direito vivido como mais um aspecto dificultoso nas já polêmicas questões envolvendo a matéria[4], sendo sensível em particular o tema do interrogatório da pessoa jurídica quando ré no processo penal, levando-se em conta o regime de “dupla responsabilidade” entre o administrador e a pessoa moral.
Assim, decidiu-se que “(…) O interrogatório, como se sabe, caracteriza-se como um ato de prova e de defesa. Revela o fato e todos os componentes a serem analisados no que se refere à imputação criminal. Uma prova acusatória sem uma confissão exige muito maior carga de convencimento do que outra que corrobora uma confissão. Essa é uma evidência de que o interrogatório constitui prova. Por certo que não tem eficácia exclusiva, podendo até mesmo caracterizar o crime de autoacusação falsa descrito no art. 341 do Código Penal. Também contém eficácia de defesa o interrogatório, sendo esta a precípua função dele, por isso ficando obrigado o juízo a ouvir o interrogando em qualquer fase do processo, sob pena de lesão ao princípio da ampla defesa. O réu, ao falar em juízo, tem a oportunidade de esclarecer a situação fática, explicar os motivos de sua ação, revelar fatos desconhecidos em seu proveito, dar sua interpretação referentemente a provas já colhidas etc. Tratando-se de interrogatório de pessoa jurídica, quem tem esse poder? Logicamente, aquele que se posicionou como o centro de decisão na ocasião dos fatos ou que ocupa a função contemporaneamente ao processo. Só essa pessoa tem a capacidade de esclarecer e explicar a motivação da conduta, que importa para a imputação da pessoa jurídica. Obviamente, se houver colidência de interesses entre as defesas da sociedade e do diretor, este não poderá representá-la no ato de interrogatório. Todavia, nunca poderá atribuir-s e a preposto o direito de ser interrogado em nome da empresa. Acaso haja incompatibilidade entre as defesas do diretor do qual emanou a ordem e da pessoa jurídica, por certo nesse processo a sociedade não será interrogada, a não ser que exista outro administrador integrante do colegiado, que não tenha sido acusado.[6] No âmbito acadêmico, GRINOVER expressou sua posição a respeito para considerar, assim como no aresto acima, a necessidade de proceder-se ao interrogatório na figura do “… gestor da pessoa jurídica … , com todas as garantias previstas nos novos artigos do Código de Processo Penal.”[7].
Há de se considerar, contudo, que o interrogatório da pessoa jurídica é apenas um dos aspectos que exigem regulamentação adequada, esta nunca prevista nos projetos de reforma parcial do Código de Processo Penal e ainda não discutida na tramitação dos projetos de reforma global desse mesmo Código atualmente na Câmara dos Deputados[8].
Assim, devem ser levados em consideração sobretudo se observadas as experiências no direito comparado[9], além dos aspectos concernentes ao interrogatório, aqueles ligados à: (i) representação da pessoa jurídica em juízo; (ii) local de citação da pessoa jurídica: (iii) o estatuto jurídico da pessoa física que depõe em nome da pessoa jurídica acusada.
Cada uma dessas questões possui desdobramentos cuja extensão se verificará a partir das opções técnico-políticas para o tema, podendo ser destacados alguns aspectos de imediato para cada um deles.
Quanto à representação da pessoa jurídica em juízo quando ela estiver na condição de ré, uma regra que nos parece inarredável é que esta pessoa física não pode ser a mesma que vier a ser, eventualmente, acusada na forma da responsabilidade penal concomitante entre pessoa física e jurídica para o mesmo fato criminoso e, ainda nesse ponto, há de se definir se essa representação deve levar em conta o momento do cometimento do crime ou momento em que a persecução se inicia na forma estabelecida pelo contrato social ou estatuto da empresa, ponderando-se a variável de eventual substituição estatutária do representante no curso da persecução.
Ainda desdobrando esse aspecto, o status dessa pessoa física (representante) há de ser igualmente delineado, havendo experiência na legislação comparada (direito francês) de recair-lhe a condição de testemunha, com todos as implicações que isto acarreta[10] e sem que possa, nessa condição, estar sujeito a alguma medida cautelar porque representante em juízo da pessoa jurídica acusada penalmente, estas que devem recair na pessoa moral que deve, na forma legalmente estabelecida, garantir o Juízo.
A forma de citação, se enfocado o direito comparado como parâmetro e, em especial, o direito francês, como se dá a comunicação das pessoas jurídicas no processo civil, com os atos comunicacionais formalizados por envio postal, endereçados na forma estatutária e destinados ao representante processual.
Todos esses assuntos, ao lado de outros tantos quantos possam ser acrescidos como derivados da Lei 12846 de 2013 deveriam ocupar a pauta legislativa para o devido aperfeiçoamento do sistema processual penal voltado para as pessoas jurídicas o que até o momento não ocorre mesmo no âmbito da vegetativa tramitação do PLS 154/09.
NOTAS
[1] Como breves referências, consulte-se: THOMPSON, Augusto. Aplicação da criminologia na justiça penal: a criminalização da pessoa jurídica. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 31, v. 8, 2000. p. 217-227. Ainda, SANTOS, Juarez Cirino dos. As idéias erradas do professor Lecey sobre criminalização de pessoas jurídicas. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. n. 14, 2004. p. 257-268.
[2] A respeito, como exemplos pontuais dessa discussão, temos as obras de SHECAIRA, Sérgio Salomão: “Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, de acordo com a Lei 9.605/98”. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998; DOTTI, René Ariel, A incapacidade criminal da pessoa jurídica : uma perspectiva do direito brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 11, v. 3, 1995. p. 184-207; BREDA, Juliano. A inconstitucionalidade das sanções penais da pessoa jurídica em face dos princípios da legalidade e da individualização da pena. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. PRADO, Luiz Regis e DOTTI, René Ariel (coords.). SP, RT 3. ed.. p. 293-307.
[3] MOREIRA, Rômulo de Andrade . A responsabilidade penal da pessoa jurídica e o sistema processual penal brasileiro. In Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed.. p. 331-352; GRINOVER, Ada Pellegrini. Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica. In Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica .GOMES, Luiz Flávio (coord). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. SP: RT, 1999, p. 46-50
[4] Para uma interessante abordagem do comportamento dos Tribunais sobre o tema em questão, veja-se Langenegger, Natalia. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA: O ordenamento jurídico brasileiro está preparado para reconhecê-la?. Disponível aqui.
[5] Para uma interessante abordagem do comportamento dos Tribunais sobre o tema em questão, veja-se Langenegger, Natalia. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA: O ordenamento jurídico brasileiro está preparado para reconhecê-la?. Disponível aqui.
[6] TRF 4a Região – DOU 26/02/03 – p. 914 – Rel. Fábio Rosa
[7] Op. cit.
[8] Projeto de Lei 8045/10, do Senado e PL 7987/10 que tramita apensado e foi apresentado pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ)
[9] Pieth Mark e Ivory Radha . Emergence and Convergence: Corporate Criminal Liability Principles in Overview . Londres – Nova York . Springer-Verlag. ISBN-10: 9400706731. 1a. ed.2011.
[10] Arts. 706-45 do Código de Processo Penal francês.