Assédio sexual à luz do feminismo e da necessidade da pena
Assédio sexual à luz do feminismo e da necessidade da pena
Na língua portuguesa assediar significa insistir, importunar, perseguir; assim, quem assedia é, no mínimo, inconveniente por ocasionar ao terceiro uma situação constrangedora. Todavia, na atualidade, o referido termo pode ser empregado de diferentes maneiras a depender do contexto em que se esteja a analisar. No direito, o ato de assediar pode ensejar implicações em diferentes searas.
No direito do trabalho fala-se em assédio moral quando o empregador, de forma reiterada, pratica atos que atentam contra a dignidade física e/ou psíquica do empregado. Em outras palavras, o assédio moral se caracteriza quando o empregador, sistematicamente, através de condutas abusivas, expõe o empregado a situações humilhantes e vexatórias, causando-lhe, em função disso, danos físicos e/ou psicológicos.
Em cartilha sobre o tema (2011) o Senado Federal ressalta que só há assédio moral quando há habitualidade na prática dos atos que evidenciam a violência psicológica praticada pelo empregador. Assim sendo, um ato isolado de violência psicológica, por si só, não configura assédio moral.
Por outro lado, não se deve confundir assédio moral com críticas construtivas ou avaliações de trabalhos. Entende-se que só há assédio moral quando os atos de gestão são praticados com finalidade discriminatória; quando há a intenção inequívoca de humilhar o empregado.
O Senado Federal afirma ainda que assédio moral não se confunde com assédio sexual. O assédio moral é um conceito mais amplo que engloba as condutas que caracterizam o assédio sexual, que, por sua vez, nada mais é do que um assédio com finalidade específica (a sexual).
Assim sendo, apesar de inexistir qualquer dispositivo legal que trate de forma cristalina a questão do assédio moral, é entendimento consolidado, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, que o assédio moral acarreta a responsabilização do empregador (superior hierárquico) em instâncias distintas e independentes.
No âmbito trabalhista, apesar do artigo 483 da CLT não indicar expressamente a possibilidade de rescisão do contrato de trabalho pelo empregado em função do assédio moral, é inequívoco o entendimento de que a rescisão contratual se dá por justa causa e gera o dever de indenização em desfavor do empregador.
No âmbito criminal, por sua vez, diversos crimes podem ser caracterizados, a depender do ato de violência que fora praticado contra o empregado. Assim, dependendo do caso, um ato isolado pode caracterizar um tipo penal autônomo. Não se faz necessário que haja habitualidade (elemento imprescindível para a caracterização do assédio moral trabalhista) para que o agente incorra em um determinado tipo penal.
Nota-se que, para o Direito Penal, as várias condutas que culminam na caracterização do assédio moral, analisadas de forma isoladas, já configuram, individualmente vários tipos penais autônomos. Expliquemos: um ato isolado que, em tese, não configuraria o assédio moral, pode caracterizar um tipo penal autônomo, qualquer que seja (ex: injúria, tortura, ameaça, constrangimento ilegal, racismo, etc.).
Partindo-se desta premissa, focaremos no tipo penal de assédio sexual, com previsão expressa no artigo 216- A do CP brasileiro. O referido tipo penal, como já dito antes, é uma espécie de assédio moral com uma finalidade específica, qual seja, a finalidade sexual.
Trata-se de um crime sexual que só se caracteriza quando há um vínculo anterior de subordinação hierárquica entre o autor do assédio e a vítima, ou seja, a condição de superioridade hierárquica no assédio sexual é imprescindível para que o tipo penal possa ser caracterizado.
Baker (2015), ao tratar do feminismo como movimento social, diz que a tutela legal do assédio sexual é fruto dos movimentos feministas que se empenharam em colocar em pauta a problemática referente ao assédio nas relações de trabalho. Ela ainda ressalta que o assédio é uma prática social arraigada, que coloca a mulher em uma posição inferior (de subordinação) em relação ao homem.
Ademais, além de perverso, o assédio termina por afastar a mulher do ambiente de trabalho, fomentando, assim, ainda mais a dominação masculina e a discriminação da mulher no ambiente de trabalho.
Após fazer uma breve análise histórica a respeito do tema, a autora afirma que o direito estadunidense, por meio da Civil Right Act de 1964, foi o primeiro sistema legal a mencionar a questão do assédio sexual. Destaca também que apesar da referida lei federal não ter criminalizado o assédio sexual, esta foi de grande importância no combate a estas condutas.
Na mesma linha, Ribeiro (2013) afirma que a luta feminina pela igualdade nas relações de trabalho teve início nos Estados Unidos, em meados dos anos 70, após as reclamações das trabalhadoras que se sentiam ameaçadas em relação aos abusos e as insinuações sexuais dos seus superiores hierárquicos (homens). O autor menciona que apesar da grande discussão que se teve a respeito do tema, nos Estados Unidos, atualmente, a repressão ao assédio sexual se dá, na maioria dos casos, através da legislação cível.
Em matéria de assédio sexual, alguma doutrina, baseada na distinção feita na década de 90 pelos Tribunais norte-americanos entre assédio ambiental e assédio quid pro quo ou chantagístico, entende que apenas este pode ensejar a responsabilidade do agente a título penal.
Este entendimento também foi adotado pelo legislador brasileiro, o qual em 2001, ao introduzir o crime de assédio sexual no CP, estabeleceu como conditio sine qua non para a caracterização do tipo a condição de superioridade hierárquica do sujeito ativo.
Assédio quid pro quo ou chantagístico, como a própria nomenclatura já sugere, é aquele em que o sujeito ativo, valendo-se da sua posição de superior hierárquico, solicita uma vantagem sexual como condição para que a vítima obtenha vantagens ou benefícios no trabalho.
Nota-se que no assédio chantagístico a relação de hierarquia é indispensável para caracterização do fato, podendo o assédio restar caracterizado através da prática de apenas uma única conduta.
Por outro lado, entende-se por assédio ambiental aquele constante e permanente assédio praticado no ambiente laboral, seja pelo superior hierárquico ou por um colega de trabalho. O referido assédio se traveste de investidas cotidianas, de conotação sexual, que terminam afetando as condições de trabalho da vítima. Nota-se que diferentemente do que sucede com o assédio quid pro quo ou chantagístico, nesta modalidade de assédio a constância é elemento imprescindível para a caracterização do fato.
Nas palavras de Rita Mota Sousa (2015, p. 80):
O assédio sexual será de ambiente hostil (hostile environment) quando, sem que haja um condicionamento da atribuição de benefícios laborais tangíveis à realização de favores sexuais, exista, ainda assim, uma degradação das condições de trabalho por força de comportamentos discriminatórios, praticados por colegas, clientes ou superiores hierárquicos, em razão do gênero, de tal modo que é afetado o direito à igual participação no ambiente de trabalho […]
Ribeiro (2013), ao diferenciar as duas modalidades de assédio, afirma que apenas o assédio chantagístico possui dignidade penal. Para o autor, o assédio ambiental, apesar de sua relevância jurídica, deve ser combatido apenas no âmbito administrativo e disciplinar das instituições.
O autor entende que as condutas que consubstanciam o assédio ambiental não afetam qualquer bem jurídico relevante. Indo mais além e em consonância com o pensamento de alguns dos grandes juristas brasileiros (Luiz Flávio Gomes, Renato de Mello Jorge Silveira), o referido autor chega a mencionar que, em nome do princípio da intervenção mínima, nem o assédio chantagístico deveria ser alvo da tutela penal.
Ousamos discordar do ilustre doutrinador. Entendemos que ambas modalidades de assédio apresentadas afetam um bem jurídico de elevada relevância, qual seja a liberdade sexual da vítima (que na imensa maioria dos casos é mulher). Liberdade sexual esta que deve ser vista em sentido amplo, ou seja, a liberdade de não sofrer intervenções indesejadas de natureza sexual. Esta é a vertente negativa da liberdade sexual sustentada por Inês Ferreira Leite (2004). Assim, tanto o assédio chantagístico, quanto o assédio ambiental, ao nosso ver, afetam a liberdade sexual da vítima, já que configuram uma intromissão indesejada na intimidade e na liberdade da mesma.
Vale ressaltar que o assédio ambiental não se confunde com o assédio de rua, pois, conforme já dito, a incriminação do assédio sexual, não apenas no Brasil, está intimamente ligada a discriminação de gênero nas relações laborais, sendo, portanto, um crime específico.
O tipo penal do assédio sexual (art. 216-A, CP), portanto, apesar de ser neutro (já que os sujeitos ativo e passivo podem ser tanto o homem quanto a mulher) e de só englobar o assédio chantagístico, apresenta uma faceta de crime de gênero, já que a imensa maioria das vítimas são mulheres.
Nessa esteira, é totalmente descabido o argumento de que não há bem jurídico relevante para a incriminação do assédio sexual. Por outro lado, poderia se argumentar que, apesar da relevância do bem jurídico protegido, a incriminação do assédio sexual não se faz necessária em virtude do aspecto subsidiário inerente a toda e qualquer intervenção penal, que impõe que o direito penal só pode ser chamado a intervir quando se demonstrar insuficiente e ineficaz a proteção do bem jurídico através de outros meios menos gravosos.
Pensamos que a legitimidade na incriminação do assédio sexual perpassa por uma análise do princípio da necessidade da pena. A doutora Maria Fernanda Palma (2016) em artigo sobre o princípio da necessidade da pena diz que a expansão do direito penal através da tutela de novos bens e interesses fez com que o princípio da necessidade da pena fosse relativizado, passando a ser utilizado não mais para restringir a atuação punitiva do Estado por meio do Direito Penal, mas sim para justificar novas incriminações.
A autora, nas suas lições sobre a necessidade da pena (2017), traça algumas indagações a serem respondidas para se verificar se a incriminação goza ou não de legitimidade penal. Para isso, três questionamentos devem ser respondidos: a) há carência na proteção do bem jurídico? b) há alternativas a penalização da conduta? c) há eficácia concreta na sua criminalização?
No que tange ao assédio sexual, pensamos que o legislador brasileiro, ao conferir proteção penal a esse tipo comportamento (que objetifica e discrimina a mulher em detrimento do homem), agiu acertadamente, uma vez que o referido comportamento possui um relevo ético extremamente negativo. Ademais, a incriminação se justifica pela relevância do bem jurídico protegido, que exige uma resposta estatal mais dura.
Pensar que o Direito Penal não deve ser chamado a intervir diante dessa situação é estimular a discriminação no trabalho em função do gênero. As alternativas menos severas em relação à incriminação não esgotam o potencial de lesividade do assédio sexual, que em qualquer de suas modalidades, configuram um constrangimento para a mulher.
Já em termos de eficácia e de prevenção geral, pensamos que a incriminação do assédio sexual, por si só, não é suficiente para direcionar e educar o indivíduo para a não realização da conduta em questão, uma vez que a objetificação da mulher e a discriminação em função do gênero é algo que está arraigado na sociedade. Todavia, diante de tal situação, a via penal, apesar de não ser tão eficaz, é a que produz os melhores resultados.
Nota-se, portanto, que apesar do assédio sexual já ser um tipo penal consolidado no nosso CP, ainda existem discussões acerca da legitimidade da referida incriminação, como também ainda existe muita confusão acerca do que realmente caracteriza o tipo penal em comento. Ao nosso ver, o tipo penal relativo ao assédio sexual deveria ser mais amplo para englobar os casos de assédio ambiental.
Ademais, para aqueles que advogam uma possível descriminalização das condutas de assédio sexual, uma reflexão de cunho pedagógico deve ser feita: qual a interpretação gerada na sociedade na descriminalização de uma conduta? Este fato não induz ao pensamento de correção de determinada conduta? A descriminalização deve ser feita com bastante cautela, sob o risco de se inverter a lógica de tentar enfrentar determinado problema por outras instâncias que não a penal.
Por fim, Ribeiro (2013) faz um alerta para a redação defeituosa do tipo penal do assédio sexual. O autor explica que o verbo “constranger” exige um complemento, já que quem constrange, constrange alguém a alguma coisa.
Logo não faz sentido a forma como o tipo foi construído (já que o tipo não indica em que consiste o constrangimento, mencionando apenas o elemento subjetivo específico do agente que é: o de obter vantagem ou favorecimento sexual).
Assim, o correto seria interpretar o tipo penal como “interferir na liberdade de escolha sexual de alguém, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico”.
REFERÊNCIAS
BAKER, Milena Gordon. A tutela da mulher no direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
LEITE, Inês Ferreira. Pedofilia : repercussões das novas formas de criminalidade na teoria geral da infracção. Coimbra : Almedina, 2004
PALMA, Maria Fernanda. Direito Penal- Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da Lei Penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas. 2°ed., rev. e ampl, 1° reimpressão. Lisboa: AAFDL, 2017.
PALMA, Maria Fernanda. O argumento criminológico e o princípio da necessidade da pena no juízo de constitucionalidade. In: Julgar. – Coimbra, 2007-. – Nº 29 (Mai.-Ago. 2016), p. 105-118.
RIBEIRO, Bruno Salles Pereira. Delineamentos sobre o crime de assédio sexual. Revista Liberdades. n°11 (set- dez 2013). Disponível aqui. Acesso em: 10 de Agosto de 2018.
SENADO FEDERAL. Cartilha Assédio Moral e Sexual. Brasília: Senado Federal, Diretoria-Geral, 2011. Disponível aqui. Acesso em: 10 de Agosto de 2018.
SOUSA, Rita Mota. Introdução às teorias feministas do direito. Porto: Edições Afrontamento, 2015.