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Até quando o parcelamento do débito tributário implica a suspensão da punibilidade?

Por Bruno Augusto Vigo Milanez

Questões referentes à suspensão do processo e do curso do prazo prescricional por crimes tributários, nas hipóteses de parcelamento dos débitos, são extremamente complexas, notadamente pela sucessão de leis que regem a matéria. Face a esta razão, deve-se delimitar com exatidão o momento da prática dos fatos em tese delituosos (tempus comissi delicti) bem como o momento da ocorrência do parcelamento do débito tributário, para se determinar a lei aplicável ao caso concreto.

A questão relativa à extinção da punibilidade na hipótese de pagamento de débitos tributários regulamentava-se pelo art. 14, da Lei 8.137/90, que foi revogado expressamente pelo art. 98, da Lei 8.383/91. A inexistência da extinção de punibilidade pela quitação de débitos tributários permaneceu até a entrada em vigência da Lei 9.249/95, que em seu art. 34 previu a extinção da “punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (…), quando o agente promover o pagamento do tributo (…), inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.”

Em exegese da expressão “promover  o pagamento”, consolidou-se no STJ a orientação de que “uma vez deferido o parcelamento, em momento anterior ao recebimento da denúncia, verifica-se a extinção da punibilidade prevista no art. 34 da Lei nº 9.249/95, sendo desnecessário o pagamento integral do débito para tanto.” (STJ – RHC 11.598, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 2.9.2002)

Não se travou nesse momento qualquer discussão a respeito do alcance da expressão “antes do recebimento da denúncia“, pois o juízo de admissibilidade da acusação era realizado a partir da atualmente revogada regra do art. 43, do CPP, que não contemplava a possibilidade do contraditório prévio ao recebimento da inicial acusatória.

Como na prática muitos acusados apenas aderiam ao parcelamento e, mesmo sem quitação do débito tributário, beneficiavam-se da extinção da punibilidade, criou-se um sistema de suspensão da pretensão punitiva estatal pelo parcelamento através da regra do art. 15, caput e parágrafo 1º, da Lei 9.964/00. Com a entrada em vigência dessa regra, dois regimes passam a vigorar: (a) parcelando-se o débito tributário, suspendia-se o processo e o curso do prazo prescricional e; (b) pagando-se o débito tributário, extinguia-se a punibilidade.

A partir da nova sistemática legal, a suspensão da punibilidade decorreria de parcelamento do débito tributário “anterior ao recebimento da denúncia“. Mais uma vez, pouca dificuldade havia para se interpretar esta expressão, face a sistemática prevista pelo então vigente art. 43, do CPP.

Com a entrada em vigência da regra do art. 9º, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 10.684/03, passa-se a reconhecer o parcelamento tributário como hipótese de suspensão da pretensão punitiva estatal e o pagamento do débito como forma de extinção da punibilidade. Há, porém, uma significativa alteração: não se limitou temporalmente o momento da adesão ao parcelamento ou do pagamento do tributo para efeitos de suspensão ou extinção da punibilidade. Passou-se então a admitir que a suspensão ou extinção da punibilidade ocorresse mesmo que o parcelamento ou pagamento do tributo fosse posterior ao recebimento da denúncia:

“AÇÃO PENAL. Crime tributário. Tributo. Pagamento após o recebimento da denúncia. Extinção da punibilidade. Decretação. HC concedido de ofício para tal efeito. Aplicação retroativa do art. 9º da Lei federal nº 10.684/03, cc. art. 5º, XL, da CF, e art. 61 do CPP. O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário.” (STF – HC 81.929, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Rel. p/ Ac. Min. Cezar Peluso, DJ 27.2.2004)

No precedente, o STF reconheceu que a regra do art. 9º, caput e parágrafos, da Lei 10.684/03, ostenta natureza jurídica material, tratando-se de lei penal em sentido estrito. Conclui-se que em decorrência do caráter penal da regra nova, aplica-se o dispositivo aos crimes tributários ocorridos durante sua vigência. Portanto, mesmo na hipótese de revogação do dispositivo por lei penal mais gravosa, sua eficácia remanesce relativamente aos fatos ocorridos durante sua vigência.

Contudo, referida regra restou revogada pelo art. 6º, da Lei 12.382/11, e portanto, após a entrada em vigência dessa regra, estabeleceu-se que a suspensão da punibilidade somente ocorre se o parcelamento se der antes do recebimento da denúncia. A regra nova alterou o art. 83, da Lei 9.430/96, possuindo a seguinte redação, para o que aqui interessa:

“§ 2o  É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.” – g.n. –

Basicamente, restabeleceu-se a sistemática do art. 34, da Lei 9.249/95: o parcelamento do débito tributário, se anterior ao recebimento da denúncia, acarreta suspensão da punibilidade. Ocorre que na atualidade assume especial importância a interpretação a ser conferida à expressão ‘antes do recebimento da denúncia‘.

É que com a reforma legislativa do procedimento comum ordinário promovida pela Lei 11.719/08, o juízo de admissibilidade da acusação passou a ser ato complexo realizado, em um primeiro momento, após o exercício do direito de ação (art. 396, do CPP) e, em um segundo momento, após a apresentação de resposta à acusação (art. 399, do CPP). É possível, portanto, falar-se em dois juízos de recebimento da acusação:

“(…) é preciso acrescentar que a reforma processual de 2008 trouxe significativa modificação em relação à matéria: é que a Lei 11.719/2008, que deu nova disciplina aos procedimentos penais do CPP, de forma pouco técnica, estabeleceu dois juízos de recebimento da acusação. No primeiro (art. 396), o juiz verificará se não é o caso de rejeição liminar da acusação pela verificação das situações previstas no art. 395: inépcia da denúncia ou queixa, falta de pressuposto processual ou condição para exercício da ação penal e falta de justa causa. Se entender pelo recebimento, determinará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito no prazo de 10 (dez) dias. Após a resposta, abre-se a possibilidade de haver decisão de absolvição sumária quando verificada causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade, atipicidade do fato ou extinção da punibilidade (art. 397). Não sendo caso de absolvição sumária, haverá então o segundo recebimento, na forma prevista pelo art. 399 do CPP.” (GOMES FILHO, 2012, pp. 173-174) – g.n. –

No mesmo sentido são os precedentes do STJ, segundo os quais “com o advento da Lei nº 11.719/08, o recebimento da denúncia passou a tratar-se de ato complexo, a ser exercido em duas fases distintas.” – g.n. – (STJ – HC 183.355, Rel. p/ Ac. Min. Adilson Vieira Macabu (Des. Conv. TJ/RJ), DJe 19.9.2012)

Nesse contexto, a atual sistemática de suspensão da punibilidade como efeito do parcelamento do débito tributário antes do recebimento da denúncia deve ser interpretada a partir da nova realidade introduzida pela Lei 11.719/08, a qual tornou o ato de recebimento da inicial acusatória um ato complexo.

Assim, ao estipular que a suspensão da punibilidade se dará se o parcelamento for anterior ao recebimento da denúncia, deve-se compreender que o parcelamento anterior a qualquer dos dois recebimentos deve gerar suspensão da punibilidade. Afinal, sabe-se que a interpretação das regras processuais penais observa “o princípio do favor rei, [que] estabelece, diante do conflito entre o jus puniendi do Estado e o jus libertatis do acusado, a interpretação mais benéfica ao réu do texto legal (…)” – g.n. – (STJ – REsp 1.201.828, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 5.3.2012)


REFERÊNCIAS

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. 2. ed. São Paulo: RT, 2012.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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