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Até quando vamos ‘rasgar’ a legalidade?

Até quando vamos ‘rasgar’ a legalidade?

Assim como na coluna anterior, continuo me deparando, em substituição perante uma Câmara Criminal no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, com decisões judiciais incoerentes e incongruentes, mormente em sede de execução penal.

É incrível verificar o quanto o princípio da legalidade não encontra amparo na execução criminal. Por meio das referidas decisões judiciais, verifica-se, outrossim, o seu esgarçamento.

Tais decisões são na maioria dos casos referendadas pelos Tribunais Superiores e vou me valer de um exemplo apenas para ilustrar o que pretendo demonstrar, como a exigência de outros requisitos não estabelecidos em lei à concessão da progressão de regime ou do livramento condicional.

Todo mundo sabe que o chamado princípio da legalidade, segundo Batista (2007), traduzido na fórmula ‘nullum crimen nulla poena sine lege’, no nosso caso com previsão no artigo 5º, inciso XXXIX, da CF de 1988, artigo 1º do Código Penal Brasileiro e artigos 3º e 45 da Lei de Execução Penal, exprime, também em nosso campo, o mais importante estágio do movimento então ocorrido na direção da positividade jurídica e da publicização da reação penal (CAPPELLARI, 2014).

O referido princípio, portanto, representa a garantia do indivíduo perante o arbítrio ou o excesso da intervenção penal por parte do Estado. Para Zaffaroni (1991), o princípio da legalidade não pode ter outro fundamento que a necessidade de limitar a violência seletiva do poder penal.

Batista (2007) afirma que a sua significação e alcance políticos transcendem o condicionamento histórico que o produziu, constituindo o princípio a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo (CAPPELLARI, 2014).

A abrangência do princípio inclui a pena cominada pelo legislador, a pena aplicada pelo juiz e a pena executada pela administração, vedando-se que critérios de aplicação ou regimes de execução mais severos possam retroagir (BATISTA, 2007), inclusive, no que tange a matéria disciplinar, nos termos do artigo 45 da Lei de Execução Penal (CAPPELLARI, 2014).

No entanto, de acordo com Schmidt (2007a), o Direito Penal brasileiro atravessa uma dupla crise de legitimidade.

Por primeiro, uma crise de inadequação política, uma vez que se desenvolve sob o manto de um princípio da legalidade próprio de um Estado de Direito, quando, na verdade, a CF instaura um regime político Democrático de Direito.

Por segundo, a crise diz também com a eficácia do princípio da legalidade, na medida em que os operadores do direito, de uma maneira geral, segundo ele, sequer vêm atribuindo à garantia da reserva de lei a eficácia invalidante do princípio sempre que uma norma penal o contrarie (CAPPELLARI, 2014).

E isso é o que podemos verificar quando, por exemplo, os Tribunais vêm exigindo e analisando requisitos outros não estabelecidos em lei, quando da concessão da progressão de regime ou do livramento condicional.

Sabe-se que tanto a progressão, quanto o livramento exigem dois requisitos apenas a sua concessão: objetivo e subjetivo. O objetivo diz com o cumprimento de determinado tempo de pena e o subjetivo diz com a concessão de atestado de boa conduta carcerária por parte da Administração Prisional.

O requerimento, portanto, de requisitos outros que não os legais, efetivamente representa afronta ao princípio da legalidade, o que nos parece lógico, mas não o é o que vem ocorrendo.

O próprio Superior Tribunal de Justiça no AgRg no HC 369953/MG, com julgamento em 14 de fevereiro de 2017, salientou não ser vedado ao magistrado o indeferimento do benefício quando, a despeito de o reeducando apresentar bom comportamento carcerário certificado pelo Diretor do estabelecimento prisional em que esteja cumprindo pena, entender não implementado o requisito subjetivo, desde que aponte peculiaridades da situação que demonstrem ausência de mérito, como, por exemplo, o seu histórico carcerário.

Realmente, com completa razão Schmidt (2007a) revela que pouco tem sido feito para a apreciação da constitucionalidade das normas de execução, creditando como o pior de todos os vícios percebidos no curso da execução, o vício ideológico que domina a hermenêutica dos processos.

Dessa forma, afirma que embora estejamos vivendo em um Estado Democrático de Direito, verifica-se que a execução da pena sequer adequa-se aos ditames de um Estado de Direito. Por isso, concita a todos que observem a Constituição, clamando, por fim, por indignação, uma vez que nas suas palavras, “negar o problema é fácil” (SCHMIDT, 2007a, p. 75).

Agora, em tempos de hiperencarceramento, reconhecido o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro e as más condições carcerárias, gerando, inclusive, por parte do STF, direito à indenização, o mínimo que uma decisão dessas deveria precisar acaso o acolhimento da legalidade não lhes pareça suficiente, é o seu impacto no contexto vigente.

Do contrário, não adianta reconhecer o acima então referido, se efetivamente a consciência punitiva não consegue ceder ao legal. Qualquer medida dita a se implementar será como diz a expressão, utilizada no Brasil, dizem por que uma vez instados a abolirem o tráfico de escravos: “Lei para inglês ver.”


REFERÊNCIAS

CAPPELLARI, Mariana Py Muniz. Os Direitos Humanos na Execução Penal e o Papel da Organização dos Estados Americanos (OEA). Porto Alegre: Núria Fabris, 2014.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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