Ativismo judicial e a terceira velocidade do Direito Penal
Por Rafhaella Cardoso e Bruna Gabriela Tavares e Azevedo
O atual cenário político do país, no qual o Poder Judiciário revela-se determinante em relação aos demais, trouxe à tona a discussão a respeito de um desequilíbrio sob a perspectiva da tradicional teoria da tripartição dos poderes, classicamente construída por Montesquièu e abriu espaço para uma atuação, conforme alerta parte da doutrina, deturpada dos órgãos jurisdicionais. Assim, tem-se que o Poder Judiciário está hodiernamente marcado pelo chamado “ativismo judicial” e pela “politização do Judiciário”, fenômenos observados também em outros países e mesmo no Brasil já há algum tempo, sendo os fatos recentes particularmente reveladores de de uma realidade em que a Justiça, no sentido jurisdicional, e Política relacionam-se de maneira controversa, fomentando discussões no meio jurídico, científico e acadêmico, bem como na sociedade, de forma geral.
Essa atuação ativista e politizada é consequência de em um Poder Judiciário empoderado por uma crise política sem precedentes e fragilidade das instituições democráticas. Nesse cenário, no qual se destaca o popular e controverso juiz federal Sérgio Moro, bem como a atuação determinante do Supremo Tribunal Federal, assistimos, nos noticiários, juízes determinarem os rumos do país: Lula será ou não ministro? Terá ou não foro privilegiado? Interceptações telefônicas podem ser publicizadas, mesmo quando envolvem não investigados e a Presidente da República? As garantias processuais, quando sopesadas com uma finalidade “nobre”, qual seja, de caçada à corrupção, devem ou não prevalecer?
Dado que a narrativa dos fatos, bem como a análise jurídica – quase nunca uníssona – têm sido amplamente debatidas na imprensa e periódicos científicos, nos propomos aqui a elucidar alguns conceitos que julgamos pertinentes quando da reflexão a respeito do tema. Assim, a hipótese que aqui levantamos é que a operação Lava-Jato, de forma geral, bem como o ativismo de um magistrado que extrapola a legalidade e formalismo em nome do que ele chama de interesse social, seriam a materialização de um Direito Penal teleológico, ou “do autor”, no ordenamento pátrio, em um cenário de flagrante politização do Poder Judiciário – ou de judicialização da política.
Sem pretensão de responder às perguntas acima ou provar, definitivamente, a hipótese enunciada, dada a complexidade do tema e divergências interpretativas dos fatos, que extrapolam os limites deste ensaio, buscaremos aqui fomentar as reflexões acerca do momento político atual. Para tanto, abordaremos, inicialmente, a origem da repartição dos poderes e seu desenvolvimento até o atual Estado Democrático de Direito. Em seguida, trataremos, brevemente, do fenômeno do ativismo judicial e, finalmente, levantaremos as críticas cabíveis à politização da justiça para, enfim, delegar ao leitor suas conclusões.
Em Aristóteles, na sua obra “A Política”, já se prescrevia ao soberano três funções totalmente diferentes, quais sejam: a função de criar normas a serem aplicadas a todos (legislativo); a função de aplicar concretamente tais normas (hoje, função administrativa) e a função de dirimir os conflitos em razão dos eventuais descumprimentos de tais normas nos casos em concreto (função jurisdicional). Com o ímpeto da filosofia racionalista iluminista e a sua característica disposição para buscar, racionalmente, encontrar parâmetros que pudessem limitar a atuação e os privilégios dos governantes e aristocracia do Antigo Regime, o jusnaturalista e contratualista John Locke também observava importante diferenciar as três funções estatais em três poderes. Locke inovou ao dizer que tais poderes deveriam ser exercidos por órgãos distintos. No entanto, como reconhecimento de que o Parlamento gozaria de maior legitimidade democrática, tendo em vista que são eleitos pelo povo e representantes deste, enfatizava que todos devem se sucumbir à Lei (princípio da legalidade), destacando claramente em seus escritos que a função atribuída ao Poder Legislativo deveria se sobressair às exercidas pelos demais órgãos.
A ideia e separação dos poderes e de separação dos órgãos distintos consagrou-se, no entanto, apenas a partir da obra “O Espírito das Leis” escrita por Montesquièu ,em 1748. Além de pensar em funções atribuídas a poderes distintos, o autor estabelece que tais poderes são independentes e harmônicos entre si. Decorre, desta teorização, a noção de neutralização política do Poder Judiciário, uma das grandes características sustentada pelo Estado burguês de cunho liberal, e que é suscitada hodiernamente, como um fator indispensável para a tripartição dos poderes.
Assim, a partir da teoria da tripartição dos poderes criou-se um dogma de que o Poder Judiciário é um poder politicamente neutro. A neutralização do Poder Judiciário significava um distanciamento do direito das bases sociais para assumir uma postura mais ética. A neutralização também enaltece a centralidade da lei como fonte de direito. Como a subsunção era o método utilizado para aplicar a lei aos casos concretos, ao Juiz não caberia analisar se a decisão desagradaria ou não (FERRAZ JR., 1994, p 12).
Entretanto, esta concepção liberal da função do Judiciário passou por diversas alterações, a partir de vários fatores sociais e jurídicos, seja por meio das novas diretrizes assumidas pela Hermenêutica Constitucional, seja pela alteração do paradigma de Estado, de Estado Liberal, para Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) (DALLARI, 2007, p. 76 e ss.), em que se obrigou dos textos legislativos e, inclusive, dos magistrados, uma postura mais politizada, para buscar alcançar nortes de igualdade material e não meramente formal dos indivíduos perante as leis. Esta neutralização, exemplificativamente, determina que o uso da força só possa se dar, primeiramente, pelo Poder Judiciário, estando negada pelo uso de legislativo e, com certas ressalvas, pelo Executivo. O Judiciário não concentra a força, mas filtra seu uso. O legislativo define a violência e o uso da força em abstrato, e o Judiciário a materializa. E, quando a Justiça é politizada, o uso da força “faz do Juiz um justiceiro e os tribunais, de exceção” (FERRAZ JR., 1994).
No ordenamento pátrio, acredita-se que grande foi a contribuição da Carta Magna de 1988 para que o Judiciário, apenas além de controlar e fiscalizar a legalidade, pudesse assumir também o papel de “guardião da legitimidade”, já que em inúmeros dispositivos o constituinte originário determinou pautas de controle de constitucionalidade bem amplas, inclusive por omissão constitucional, o que relega ao Judiciário um papel bem mais ativo do que o outrora “juiz boca de lei”. Nesse contexto, o ativismo judicial pode ser identificado nas atribuições em que o Judiciário passa a “criar” o Direito, ou seja, assume a função ora de legislador negativo, contendo as eventuais falhas do Poder Legislativo, mas, sobejamente, quando atua positivamente, na criação de normas que se equiparariam a textos legais, em total arrepio à tradicional teoria da separação dos poderes.
Para a doutrina clássica, o Judiciário não poderia jamais analisar o mérito de outro poder. Entretanto, o que se percebeu-se nos últimos anos, foi que, diante da inércia dos demais poderes na efetivação dos direitos fundamentais (mormente os de caráter social) e com a crise da democracia representativa, somado às constantes necessidades de judicialização das políticas públicas para a efetivação dos direitos fundamentais, o Judiciário assumiu uma postura mais ativa, se comparada à sua tradicional visão desde às primeiras teorias que buscaram explicar a necessidade de separação das funções.
Assim, aumenta-se o número de “consumidores” de direitos, os direitos assumem caráter coletivo, e, com isso, novas formas procedimentais surgem – as ações coletivas (ação civil pública, ação popular etc.). Em consequência, a neutralidade política do Poder Judiciário é afetada porque o Juiz passa a ser corresponsável pela efetivação dos direitos. A responsabilidade do Juiz, para Ferrar Jr. (1994), passa pelas políticas impostas, via legislativa, pelos demais poderes, vinculando-se às finalidades da lei, em sentido amplo.
Em relação à judicialização da política, entende Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que esta foi desejada pelo Constituinte originário, uma vez que o Judiciário gozava, à época da CF/88, de uma maior confiabilidade do que o Legislativo e o Executivo – tem como contrapartida inexorável a politização da justiça (p. 213-214). Porém, o autor assinala um déficit de legitimidade democrática no que se refere à ampliação do papel do Poder Judiciário, típica do ativismo judicial. Nos ensina Ferreira Filho que, contemporaneamente, o controle de constitucionalidade é tido como a “garantia sine qua non da imperatividade da Constituição” (p. 219), já que, conforme afirma “onde ele inexiste ou é ineficaz, a Constituição perde no fundo o caráter de norma jurídica, para se tornar um conjunto de meras recomendações cuja eficácia fica à mercê do governante”. Porém, um ativismo decorrente deste controle, poderia não apenas fortalecer a Constituição, como, negativamente, enfraquecê-la, na medida em que “o ato inconstitucional não é mais nulo ex natura… Seus efeitos poderão persistir mesmo depois de reconhecida a infração à Constituição” (p. 242).
Segundo as críticas do autor acima, o ativismo judicial baseado na afirmação de um princípio constitucional não pode servir de pretexto argumentativo ao Poder Judiciário para impor ou afastar normatização que ultrapasse os limites de sua competência, antes executória do que criadora de normas disciplinadoras de conduta. Lado outro, conforme demonstramos, o ativismo judicial nasceu de uma necessidade de efetivação de direitos fundamentais em um cenário de omissão dos poderes executivo e legislativo, sendo a atual politização do judiciário relacionada ao Direito Penal e uma aparente cessação de garantias.
No ponto, o ilustre professor espanhol Silva Sánchez, provavelmente, diria que estamos assistindo empresários e políticos poderosos serem investigados e processados sob o respaldo do que ele chama de “Terceira Velocidade do Direito Penal”, ou seja, aquele que minora garantias processuais e materiais com vistas a aplicar penas mais severas, focando-se no autor (SILVA SÁNCHEZ, 2002). No mesmo sentido, o alemão Günter Jakobs enuncia o Direito Penal do Inimigo, o qual se direciona a um tipo de criminoso que não mais mereceria o status de cidadão, mas sim o de inimigo social, a partir do momento que sua conduta fere ou ameaça o contrato social em si, a ordem democrática (JAKOBS, 2004), como nos parece ser o caso dos réus da Lava Jato.
Assim, partindo-se de uma perspectiva tridimensional do direito, na qual o Direito deve ser analisado não por apenas uma, mas por três perspectivas – fato, valor e norma – temos que o aspecto valorativo há que ser observado para concluir-se se o ativismo judicial, politização do Judiciário e a suposta ascensão de um Direito Penal do Inimigo, ou de Terceira Velocidade, são compatíveis com um Estado Democrático de Direito. Noutros termos, a conclusão deste ensaio não é uma afirmativa, mas sim uma pergunta, a qual a resposta demanda, além do esforço de contextualizar o fenômeno atual historicamente, como pretendeu-se fazer, visita à melhor jusfilosofia, doutrina de Teoria do Direito e, por óbvio, uma reflexão que deve ser feita no meio jurídico, bem como por toda sociedade: afinal, os fins justificam os meios?
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A política. Hemus s/data.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. O Judiciário à frente da divisão dos poderes: um princípio em decadência? Revista USP, n. 21, p. 12-21, 1994.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003.
______. Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira. In: Revista de Direito Administrativo.
JAKOBS, Günther. Direito Penal Do inimigo: noções E críticas / Günther Jakobs, Manuel Cancio Meliá; org. e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Abril, Coleção “Os pensadores”.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril. Coleção ”Os pensadores”. Livro décimo primeiro.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luíz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência Política. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
WALDRON, Jeremy. The Core of the case against judicial review. In: The Yale Law Journal.