ArtigosProcesso Penal

O direito à Audiência de Custódia continua ignorado no Brasil

Audiência de custódia é um ato judicial que assegura o direito fundamental que todo cidadão preso tem em face do Estado de ser apresentado pessoalmente e com rapidez à autoridade judiciária (juiz, desembargador ou ministro, a depender de eventual prerrogativa de foro) competente para a aferição da legalidade de sua prisão (“princípio do controle judicial imediato”).

Nesta audiência, o juiz ouvirá o próprio preso, a acusação e a defesa sobre questões que tenham relação direta ou indireta com a prisão e suas consequências, a integridade física e psíquica e os direitos do detido. Em seguida, proferirá uma decisão fundamentada sobre a continuidade ou não da custódia.

Importantes diplomas internacionais dos quais o Brasil é signatário preveem, de longa data, a garantia da pronta apresentação do preso ao juiz. No âmbito do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, a audiência de custódia está prevista no art. 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

Os Princípios 10 e 37 do Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Detenção ou Prisão dispõem sobre a apresentação da pessoa capturada à “autoridade judiciária ou outra autoridade“, assim entendida aquela “estabelecida nos termos cujo estatuto e mandato ofereçam as mais sólidas garantias de competência, imparcialidade e independência” (Terminologia, “f”).

A Convenção Americana de Direitos Humanos reconhece esse direito no seu art. 7.5, que trata do “Direito à liberdade pessoal”.

A Constituição Federal e o Código de Processo Penal vigentes não trazem expressa previsão da audiência de custódia. A Constituição limita-se a prever a garantia mínima da comunicação da prisão ao juiz, sem dispor acerca da apresentação física do preso (art. 5º, LXII), o que é repetido pelo CPP (art. 306).

No entanto, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.240, o STF consignou que o direito convencional de apresentação do preso ao juiz deflagra o procedimento legal de Habeas Corpus, no qual o juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe apresentado, procedimento este que encontra previsão legal no art. 647 e seguintes do CPP.

É importante frisar, de uma vez por todas, que a audiência de custódia não deve se restringir apenas às hipóteses de flagrante delito, embora nestes casos, por se tratar de ato administrativo que independe de ordem judicial, a fiscalização deve ser ainda mais rigorosa.

A importância protetiva do ato, porém, estende-se a qualquer espécie de prisão de natureza cautelar (preventiva, temporária, para fins de extradição, etc.) e até mesmo após o cumprimento do mandado de prisão definitiva.

Isso porque os tratados internacionais que tratam da matéria não fazem tal distinção, devendo ser interpretados sempre de forma ampliativa (princípio da proteção suprema do ser humano, ou pro homine), em favor da máxima efetividade dos direitos humanos e da primazia da norma mais favorável ao indivíduo.

Essa amplitude do ato foi inclusive reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça quando editou a Resolução nº 213/2015, infelizmente ainda desconhecida pela maioria dos Magistrados brasileiros.

Art. 13. A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução.
Parágrafo único. Todos os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local.

Como etapa procedimental essencial à formalização da prisão, a consequência da não realização da Audiência de Custódia deveria ser a ilegalidade do ato, o que implicaria a necessidade de seu relaxamento, por força do art. 5º, LXV, da Constituição Federal (“A prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”).

No entanto, os Tribunais, por questões de Política Criminal, têm ignorado a regra constitucional, já que seu cumprimento literal poderia dar ensejo a uma soltura em massa, ante a total ineficiência estatal no controle do sistema prisional (“estado de coisas inconstitucional”).

O Superior Tribunal de Justiça tem manifestado que a ausência da audiência de custódia não seria apta a tornar ilegal a prisão, desde que encaminhado o auto de prisão em flagrante ao juiz competente, no prazo de 24h, em cumprimento literal ao disposto no art. 5º, LXII e no art. 306, §1º, do CPP, e que respeitadas as demais garantias constitucionais inerentes à prisão. Ademais, para o STJ, operada a conversão do flagrante em prisão preventiva, ficaria superada a alegação de nulidade no flagrante. Vejamos alguns precedentes nesse sentido:

A não realização de audiência de custódia não é suficiente, por si só, para ensejar a nulidade da prisão preventiva, quando evidenciada a observância das garantias processuais e constitucionais" (AgRg no HC 353.887/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/05/2016, DJe 07/06/2016)[1].

Ademais, operada a conversão do flagrante em prisão preventiva, fica superada a alegação de nulidade na ausência de apresentação do preso ao Juízo de origem, logo após o flagrante” (HC 344.989/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 19/04/2016, DJe 28/04/2016)[2].

A jurisprudência dessa Corte Superior é no sentido de que ausente regulamentação interna que discipline os procedimentos para a audiência de custódia, não há se falar em ilegalidade decorrente de sua não realização, além do que a decisão de prisão preventiva supera a falta da audiência de custódia”. (RHC 63.872/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 17/03/2016, DJe 01/04/2016).

Os Tribunais estaduais, de um modo geral, aderiram a este entendimento, de forma acrítica.

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347/DF, cuja liminar foi julgada em 09/09/2015, o Supremo Tribunal Federal concedeu parcialmente a cautelar, por maioria, a fim de determinar aos juízes e tribunais do país que passassem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas, contadas do momento da prisão.

Ocorre que, de setembro de 2015 para cá, pouca coisa mudou. Todos os Tribunais implantaram projetos-piloto de audiência de custódia nas capitais e em algumas grandes cidades, porém a imensa maioria das comarcas permanece totalmente alheia a essa prática.

Não há como justificar que uma pessoa que seja presa no interior do Estado tenho menos direitos do que aquele que é preso na capital. Essa posição é totalmente insustentável sob o ponto de vista constitucional, convencional e legal.

O Brasil claramente viola o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, viola a Convenção Americana de Direitos Humanos, viola sua Constituição Federal e viola ainda decisões de sua própria Suprema Corte, o que é inadmissível num Estado Democrático de Direito.

Considerando que a Audiência de Custódia é um direito da pessoa presa, sustentamos que ela deve ser realizada até mesmo durante a instrução processual. Não deve se restringir à etapa da investigação preliminar.

Havendo uma prisão, deveria ser imediatamente realizada audiência de custódia, pois o preso possui o direito de conhecer e ser conhecido pela autoridade judicial responsável pela ordem de prisão.

Outra deturpação do ato reside em avaliar previamente os requisitos da prisão e decretar a custódia preventiva antes da audiência. Isso claramente esvazia o próprio sentido da audiência de custódia, pois o preso já chega com a prisão decretada, sendo mais cômodo ao Magistrado simplesmente manter o encarceramento, ao invés de analisar, naquele ato, que é próprio para tanto, os seus fundamentos e requisitos, como deveria ser.

O preso que não foi ouvido por um Juiz e é mantido preso também deve ter assegurado o direito à audiência de custódia, que deve ser marcada imediatamente, uma vez que a sistemática processual vigente (adequada ao sistema acusatório) deslocou o interrogatório para o final da instrução, o que acarreta que o preso só seja ouvido pessoalmente pelo juiz ao final da colheita das provas.

Esse conjunto de circunstâncias evidencia que o sistema foi concebido com o propósito de encarcerar. E, num cenário como este, se o juiz apenas se limitar a cumprir a lei a situação será cada vez mais caótica.

Daí a necessidade não só de batalhar para implementar mudanças legislativas adequadas, mas também de combater essa cultura de encarceramento; uma cultura direcionada à alternativa mais fácil, que é simplesmente prender e ir transferindo responsabilidades.

Não se trata aqui de um discurso radical em favor dos direitos humanos. Trata-se de uma análise com viés socioeconômico. É que não é minimamente inteligente que um país insista em ampliar ainda mais seu sistema penitenciário.

Os países que mais encarceram no mundo hoje (EUA, China e Rússia), após a crise econômica de 2008, adotaram severas políticas de restrição à prisão e conseguiram diminuir suas taxas de encarceramento, o que trouxe benefícios em outras áreas.

Desse rol de países, o Brasil foi o único que conseguiu elevar consideravelmente o número de presos, a despeito de toda crise econômica vivenciada (SHECAIRA, 2016), até pouco tempo simplesmente ignorada. Ignorou-se a crise econômica do país como hoje se ignora a crise do sistema penitenciário e as consequências foram gravíssimas.

O progressivo aumento das taxas de aprisionamento não é, definitivamente, um dado para se orgulhar, pois deixamos de investir em setor elementares ao desenvolvimento da nação.

Na prática, não estamos enxergando a audiência de custódia como um potencial aliado neste controle e, em decorrência disso, seguimos não levando os direitos a sério…


NOTAS

[1] No mesmo sentido: RHC 73.344/PI, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 20/09/2016, DJe 30/09/2016; RHC 72.378/AL, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 21/06/2016, DJe 29/06/2016; RHC 69.350/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 30/06/2016, DJe 01/08/2016.

[2] RHC 58.308/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2015, DJe 13/11/2015; RHC 63.199/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 19/11/2015, DJe 03/12/2015.


REFERÊNCIAS

SHECAIRA, Sérgio Salomão; FRANCO, Alberto Silva; LIRA, Rafael de Souza. Lei de Responsabilidade Política. Boletim IBCCRIM, n. 289, dez. 2016.


06 carlo U 200x200

 

Sobre o tema, recentemente lancei o livro Audiência de custódia e a cultura do encarceramento no Brasil, pela Editora Canal Ciências Criminais.

A obra está disponível para aquisição AQUI.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo