A hora e a vez de Augusto Matraga: um conto sobre vingança e remissão
A hora e a vez de Augusto Matraga: um conto sobre vingança e remissão
Muito se discute e estuda acerca a liberdade que teria o homem em tomar as suas dores e a de outros, e, numa onda de violência, promover a autotutela ou a vingança, na falta do Estado.
Pois esse é o cenário trazido por João Guimarães Rosa em Sagarana de 1946 (lançado no cinema em 1966 pelo diretor Roberto Santos e regravado em 2012 por Vinicius Coimbra) em um mundo cercado por jagunços, cangaceiros, vaqueiros e coronéis do mato.
Nesse universo real do sertão esquecido, mas latente do Nordeste e Centro Oeste do Brasil, a ordem é a valentia e a bravura, em desafiar o sol a pino todos os dias das semanas, e, de manter-se vivo todas as horas do dia. Não se pode vacilar em lugar de leis criadas e mandadas pelos coronéis e fanfarrões do lugar.
Sagarana é uma obra dividida em nove contos, mas a desventura de Nhô Matraga é a que mais chama a atenção, uma vez que os próximos livros escritos pelo autor, como Grande Sertão: Veredas e Primeiras Estórias, trazem o aspecto da oralidade narrativa que desafia o leitor a entender e a adentrar o mundo vivido por aquela gente, em seu tempo, esquecida por todos, pela narração direta que traz a cultura e os trejeitos de suas vidas.
Um aviso: a pedido do próprio Guimarães Rosa não podemos contar o livro. Claro que, mesmo parcimoniosamente alguns detalhes podem revelar as surpresas, por esse motivo, em todas suas obras, o autor pede que não seja dita palavra sobre a narrativa, “para não se perder aos demais o prazer da descoberta”.
Nesse sentido, convido à leitura da aventura de Augusto Matraga e de Joãozinho Bem Bem, para que possamos decidir se seria desventura ou necessidade a morte de inimigos e não simpatizantes em região onde não há Estado, não existem leis, mas sim a sobrevivência pelo aceite do mais forte.
O corpo de jagunços que seguia o coronel era formado por inúmeros tipos diferentes de pessoas, desde desertores dos exércitos de seus Estados até assassinos ou fugidios da justiça em suas cidades natais.
Conta o autor que entre os cangaceiros haviam pessoas que deviam para a lei de São Paulo e foram esconder-se no sertão afora, achando serventia aos mandos dos coronéis, uma vez que que eram homens articulados e que muito obedeciam, até por agarrar a única chance de sobrevida que tinham conseguido afinal.
“Mocorongo eu não aceito comigo! Homem que atira de trás do toco não me serve… Gente minha só mata as mortes que eu mando, e morte que eu mando é só morte legal! ” Dizia o coronel Joãozinho Bem Bem.
Note que a relevância entre o que se pode por natureza, ou seja, manda aquele que pode mais numa terra de gente que têm de menos. O coronel é a lei e a ordem, aniquilando o que deve ser extinto, do seu jeito, a seu modo. Não é proibido matar quando manda o dono da riqueza ou até mesmo, dono do medo e do receio alheio.
Não é proibido matar quando quem manda obedece a um comando interior que controla sua ira: orgulho, honra (mesmo que parca), altivez e desejo de imposição sobre tudo e todos.
Nesse momento da história e localidade do conto pode-se observar que as propostas de vingança devem passar sempre pela aceitação do coronel, que muitas vezes, acaba intrometendo-se e mandando um de seus capangas a sujar as mãos de sangue pela vingança alheia, que em sua maioria, era mandada que fosse realizada à faca, por ser mais dolorosa e vagarosa, por ser a marca do jagunço do sertão e que demonstrava a cólera daquele que mandava.
Tanto era assim, que todos escondiam-se quando a comitiva de Bem Bem passava pela pequena aldeia do interior de Minas Gerais, cercada de medo e de muitas vítimas que por ventura ou desleixo do matador, sobreviveram aos atrozes ataques das bainhas que ululavam ao mando de seu pastor, que a tudo aniquilava quando lhe conviesse.
A falta da ordem gerou o caos dos coronéis. As guerras entre quadrilhas de fazendeiros que tomavam terras alheias para angariar cada vez mais espaço espalhavam-se a toda direção.
João Cabral de Melo Neto narra em sua Morte e vida Severina (leia AQUI) a realidade do sertão, quando num momento de infelicidade um “pombo voador” tirou a vida de um dono de pequenas terras. Morto a tiros, sua terra foi “coletada” por alguém que muito queria ter mais espaço para “fazer voar suas pombas sem asas”.
Entende-se nessa passagem aquilo que Lampião dizia horrorizar-se: com coronéis que matavam os pequenos para eles próprios se tornarem um pouco maiores. A guerra do cangaceiro mais famoso do Brasil também foi contra os mandos e desmandos dos coronéis.
A morte era mercadoria de troca. Matava-se a troco de uma palavra positiva do chefe dominador. Instaurava-se a máfia nacional naqueles cantos de terra dura e gente assustada.
Na verdade, o encontro do bom e do ruim (mau mesmo, o cabra da peste, o rompe valas, o treme defunto, o tinhoso, etc.) era quase um acontecimento naquelas terras onde apenas a força do mais preparado havia que triunfar. Augusto Matraga na visão do bom e Joãozinho Bem Bem na roupagem do mau digladiam-se em suas crenças.
Para o primeiro sua hora e vez deveria ser a purificação santa que o levaria ao Reino dos Céus, exercendo seu papel de protetor dos oprimidos pelo coronel.
Para o segundo, apenas sua vontade deveria prevalecer em terra comandada por ele e seus capangas, o homem da forte honra que não levava desaforo para casa, o padrinho mafioso, por assim dizer.
Aqui o autor traz um tanto da terra sem lei, onde se mata por vingança das mais improváveis e por motivos dos mais insignificantes. Na verdade, mostrar sua força aos outros e o quanto é destemido e valente não tem preço calculado. Mata-se por desforra. Não há Estado, não há o trato social, tampouco há o direito.
A penalização é aplicada na ponta da faca e tem o sentido pedagógico e moralizador. O ser humano era o simples objeto para que se pudesse demonstrar, pela sua amargura causada pelas chagas dos coronéis, aos outros o que se pode e o que não se pode realizar em terra de dono.
Em Grande Sertão: Veredas, obra afamada e premiada internacionalmente, a aventura de Riobaldo e Diadorim também segue a um famigerado coronel conhecido por amansar multidões na bala, dono de terras e endinheirado a ponto de ter seus próprios capangas bem pagos e bem alimentados.
Por conta de uma vingança particular, o exército de alguns marcha para vingar a honra de um.
E numa terra sem lei alguma, menos ainda moralidade por parte dos avarentos e mesquinhos coronéis, onde a faca é controlada por hábeis mãos de assassinos, o conselho de Guimarães Rosa vem a calhar:
“Se Deus vier, que venha armado. ”
REFERÊNCIAS
ROSA, João Guimarães. SAGARANA. Nova Fronteira, 2012, São Paulo
__________. GRANDE SERTÃO: VEREDAS. José Olympio, 10 ed. Rio de Janeiro, 1976.