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Beccaria: a influência do pensamento clássico criminológico

Por Mariana Py Muniz Cappellari

Já escrevi uma coluna onde pontuei sobre a influência da Escola Positiva Italiana (leia aqui), por meio dos seus mais conhecidos expoentes: Lombroso, Ferri e Garófalo. Hoje pretendo questionar e demonstrar o quanto ainda somos influenciados, também, pelo pensamento clássico criminológico, antecedente histórico do positivista criminológico, representado aquele por Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria.

De acordo com Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2006), o pensamento clássico criminológico ou a chamada criminologia clássica encontra-se na etapa pré-científica da criminologia, na medida em que creditam à criminologia a pecha de ciência apenas quando do advento da Escola Positiva Italiana, período subsequente, haja vista o método empírico-indutivo utilizado pelos positivistas criminológicos.

Segundo os referidos autores, a criminologia clássica é um legado liberal, racionalista e humanista do Iluminismo. Focada em uma orientação jusnaturalista, os clássicos viam o crime como um fato individual, tratando-se de mera infração à lei, sem qualquer referência à personalidade do autor ou a sua realidade social. Isso por que para os clássicos a lei é igual para todos, ou seja, o delinquente se baseia em uma decisão livre e soberana de infringir ou não a lei, através do chamado livre-arbítrio.

Nada mais atual para o que pregam as políticas criminais economicistas, já que representam, sim, um retorno ao passado, na medida em que assinalam a prática do crime em uma análise custo-benefício, focando, dessa forma, na racionalidade apenas do autor da infração penal. Como se pudéssemos simplificar a complexidade do homem e isso que nem falamos em inconsciente e em Freud.

O pensamento clássico, assim, via o homem como um ser racional, igual (?) e livre, na medida em que se fundava no contratualismo e no utilitarismo. Contratualista no sentido de que a sociedade era vista na contingência da ficção do contrato social. Utilitarista, na medida em que se buscava dar uma utilidade a pena.

Talvez possa se dizer que a grande contribuição de Beccaria, em 1764, com seu livro Dos Delitos e das Penas, seja no âmbito da penalogia, quando enfrenta o sistema de monarquias absolutas e de penas cruéis, buscando, assim, a racionalização e a humanização das penas, na medida em que estas deveriam ser justas e proporcionais. Daí por que será fervorosamente contra a pena de morte. Certa dose de evolução, portanto, mas a questão é o quanto a partir daí evoluímos?

Ocorre também, conforme bem explana Shecaira (2013): “A concepção filosófico-penal de Beccaria foi a maior expressão da hegemonia da burguesia no plano das ideias penais, motivada pelas necessidades de transformações políticas e econômicas.” Motivo pelo o qual, pode-se dizer, o seu pensamento será utilizado como mera legitimação de poder.

Por outro lado, o utilitarismo concedido à pena encobria uma espécie de ‘talião disciplinador’, expressão cunhada por Shecaira, embora estejamos de acordo com Wacquant (2007), de que na atualidade a penalização serve é mesmo como uma técnica de invisibilização dos problemas sociais, por isso a ‘reabilitação’ passa a ser suplantada pela chamada abordagem gerencial, centrada esta última na gestão contábil dos estoques e fluxos carcerários, totalmente preocupada com os custos econômicos e financeiros apenas. A ideia é de controle das populações perigosas e quando isso não acontece; de estoque dos mesmos em separado, haja vista a indigência dos serviços sociais.

Ainda assim verifico fortes resquícios do pensamento clássico criminológico nas falas dos nossos representantes parlamentares. Trago aqui como exemplo, matéria publicada no G1, ainda quando da primeira aprovação da PEC 171, no que diz com a redução da maioridade penal. Peço permissão para transcrever alguns trechos da notícia, pois imprescindível ao nosso raciocínio.

“A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou nesta terça-feira (31) a admissibilidade da proposta de emenda à Constituição (PEC) que reduz a maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos. Trata-se do primeiro passo para o andamento da proposta na Casa, no qual os deputados avaliam que o texto está de acordo com a própria Constituição. O placar da votação na CCJ foi de 42 deputados favoráveis à PEC e 17 contrários. O texto permite que jovens com idade acima de 16 anos que cometerem crimes possam ser condenados a cumprir pena numa prisão comum. Hoje, qualquer menor de 18 anos que comete algum crime é submetido, no máximo, a internação em estabelecimento educacional. (…) Para avançar, a proposta agora precisa passar pela análise de uma comissão especial de deputados, que analisam o mérito (conteúdo) da PEC. Essa fase deve durar 40 sessões, o que leva aproximadamente dois meses. (…) A liderança do governo se manifestou contra a PEC, mas boa parte dos deputados de partidos formalmente aliados ao Planalto votaram a favor. Os líderes do PRB, PSD e PR, por exemplo, orientaram os deputados a votarem a favor da PEC. Na oposição, pediram votos pela admissibilidade da proposta líderes do PSDB, DEM e SD. PMDB, PDT e PROS liberaram a bancada. Votaram contra PT, PC do B, PSOL, PPS e PSB. (…) Também favorável à PEC, o deputado Marcos Rogério (PDT-RO) afirmou que a proposta busca reduzir a impunidade contra atos de violência. “Essa admissibilidade não vai prejudicar quem faz as coisas certas. Não estamos colocando jovens na cadeia. Vamos fazer com que aqueles que cometem crimes não tenham certeza da impunidade, só isso”. Outro deputado favorável, Giovani Cherini (PDT-RS) disse que a mudança pode diminuir a certeza da impunidade. “É uma tentativa de que essa mudança possa, quem sabe, diminuir, através do medo do crime, a certeza da impunidade, que a sociedade toda tem. A sociedade comete crime porque tem certeza que vai ser impune. Quem é que tem a bolinha de cristal para dizer que vai ficar pior. Eu estou no time do Tiririca: ‘Pior que tá não fica’. É só cumprir a lei, fazer as coisas certas. Eu não quero colocar nenhum jovem na cadeia, acho que é horrível.” (o grifo é nosso).

Veja-se, assim, que o pensamento dos Deputados Marcos Rogério e Giovani, acima descritos, condizem com o que Beccaria, em parte, pretendia alcançar na época da Criminologia Clássica, haja vista que de acordo com o mesmo, a ideia de prevenção que se busca com a pena é mais importante do que a retribuição propriamente dita, pois o que realmente convém ao delinquente é a certeza da punição!

Pois é, só fico pensando que desde Beccaria até hoje quantos anos mesmo se passaram? Será que realmente cremos ainda na ideia de prevenção? Talvez, pois a proliferação de criminalizações quase que diárias com a imposição constante de penas de prisão poderiam justificar esse argumento, mas e a realidade, justifica? Será mesmo que políticas criminais dessa ótica têm o condão de prevenir e de reduzir a criminalidade? Como comprovar-se cientificamente a dissuasão?

O fato é que talvez, consciente ou inconscientemente, ainda centralizamos o sistema penal na pena de prisão, não conseguimos abrir mão da mesma (ainda que diante da sua falência declarada, desde sempre), embora diante de inúmeros avanços tecnológicos produzidos pela humanidade. Talvez o homem ainda esteja mesmo no medievo, no medievo e nas trevas da sua humanidade. Será?


REFERÊNCIAS

GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. A Onda Punitiva. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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