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Beijo no Asfalto e as falsas memórias: a crise testemunhal

Beijo no Asfalto e as falsas memórias: a crise testemunhal

Nelson Rodrigues (1912-1980) pode ser considerado um excelente intérprete da vida cotidiana brasileira a partir de suas análises realistas de determinadas situações. Se para muitos a Constituição Nacional “é Shakespeare”, sem dúvida alguma o Processo Penal “é Nelson Rodrigues. ”

Seus relatos em “A vida como ela é”, séries de obras escritas entre 1950 e 1961 trazem inúmeras situações do dia a dia de vários personagens que se confundem com a vida real, podendo ser utilizada como exemplo aos dias de hoje, principalmente no que diz respeito à política.

Todavia, uma de suas obras mais intelectuais e célebres foi Beijo no Asfalto, de 1960.

Ao caminhar pelas ruas do rio de Janeiro, Arandir presencia um atropelamento de um pedestre desconhecido por um pequeno ônibus da época apelidado de arrasta sandália.

Ao entender que seria seu último suspiro em vida, o agonizante estirado ao chão enxerga Arandir se aproximando rapidamente e de súbito lhe pede, como suplica derradeira, que lhe desse um beijo, atendido por compaixão. Arandir era homem simples e de bom coração, cândido na acepção da palavra, marido devotado e pessoa radiante.

Só que do outro lado da rua assistia-lhe um repórter de um jornal sensacionalista que transformou a história dos dois personagens em um possível assassinato causado por ciúmes entre os dois e que seriam um casal homossexual.

Contudo, ao chegar a conversa até a sala de Cunha, o delegado que correspondia o inverso pleno da personalidade de Arandir, identificando-se com o mal que ele mesmo, devido à sua função, prometeu combater.

Juntando esses fatos, a mídia sensacional e espetacular passou a verificar, da mesma forma que o inquérito, as pessoas que estavam na rua naquele local, da mesma forma que interrogou os parentes e conhecidos de Arandir.

Nelson Rodrigues parece criticar com veemência setores e instituições da sociedade, como o jornalismo e a maneira a qual se retrata e dissimula uma notícia, colocando o repórter Amado Ribeiro como o centro de todas as mazelas que envolveram a única vítima da trama: o inocente Arandir.

Ao investigar o caso o delegado consegue descobrir, por intermédio de seus interrogatórios e testemunhas assustadas e confusas, a possibilidade de Arandir ter tido um caso com o atropelado, jogando-lhe debaixo do assoalho do ônibus que passava.

A notícia de sua homossexualidade assombrou a esposa e seu sogro. Jornais criminalistas sensacionalistas passaram a disseminar manchetes diárias, saídas da caneta de Amado Ribeiro e indo direto ao delegado que já tinha o personagem principal como o assassino da trama.

Nesse ponto, nota-se que Arandir não conhecia o atropelado. Todavia, em investigações com a família do morto em velório, descobre-se que já haviam vistos os dois juntos mais de uma vez, e que provavelmente, até já tinham tomado banho juntos. Tudo isso depois de sair o primeiro jornal sobre a morte e o beijo. A morte e o beijo. A morte e o beijo causando a sensação de homossexualidade de ambos.

Em seu trabalho, várias acusações sem fundamento começaram a surgir, incluindo situações que em nada indicavam ao caso relatado, mas que de uma forma ou outra, foi interligada ao plano do delegado e do jornalista em culpar Arandir. Inúmeros fatos da vida do personagem o levavam à homossexualidade enrustida, inclusive a de que encontros foram marcados entre os dois amantes na sede do escritório, fato detalhado pela secretária do local.

A dúvida se transformou, logo, em certeza absoluta.

A disposição das testemunhas em relatar algo que ouviram de jornais ou de outras pessoas passou a ser intenção subjetiva individual de fazer o certo, e o certo era prender aquele homicida, que além de tudo ainda era homossexual, um crime muito pior para a sociedade do que a morte do outro homem.

Detalhes intensos foram se avolumando ao processo, grandes mentiras que não mais podiam ser apagadas consumaram suas forças contra o bom homem, que perdeu inclusive seu nome e identidade, que não podia mais ser pronunciado sem um julgamento.

Sua fiel esposa passou a ser envolvida pelo delegado na história, que conseguiu faze-la crer que seu marido era amante do atropelado.

Entretanto, o que choca é a forma qual passou a ser visto o pacato cidadão que cumpriu o desejo do atropelado, seja por um temor em não atender um moribundo à porta de sua morte, seja por simples generosidade ou piedade.

A partir da narração descrita pelo sensacionalismo irresponsável do jornal tudo passou a ganhar vida e a ilusão começou a se transformar em realidade.

O que era enuviado se dissipou e a escuridão começara a fazer parte da vida de Arandir.

Estigmatizado e assustado, a única vítima do conto deixa sua família e tudo ao redor em busca da pseudo paz. As testemunhas convocadas em sede de inquérito confirmaram os questionamentos realizados por um delegado despreparado para o interrogatório, criando em suas declarações atos que não fizeram parte de uma realidade, que ocorreu há alguns dias atrás.

Essas memorias estimuladas e pressionadas começaram a fazer parte da realidade, numa possibilidade de acontecimentos passados que vieram ao presente no inquérito por via das dúvidas, que eram dissipadas pelas perguntas-respostas realizadas em tom de induzimento.

Essa instigação de uma quase verdade ou a remontagem dos fatos ocorridos passaram como se um filme fosse montado no momento da entrevista e foi nesse ápice que um quebra cabeça começou a ganhar vida.

Para isso, peças que não “colavam” entravam em choque com os questionamentos, sendo alteradas por uma nova pergunta e assim em consequência, até que uma nova peça pudesse ser encaixada no lugar.

Não importava ao delegado, menos ainda aos sensacionalista de plantão que apenas queriam vender seus jornais, se determinada peça ou testemunho refletia a totalidade dos fatos. O que importava era que encaixava.

Para considerar verdade o relato “criado” pelas falsas memórias incutidas pelos questionamentos capciosos, era necessário um álibi. Esse álibi somente poderia ser a pessoa que mais confiava e amava Arandir: sua esposa.

Para ela, após conversas com o persistente delegado, seu marido tinha um amante.

Toda a dúvida se dissipou e se transformou em verdade absoluta.

Não contarei o trágico final da obra aqui, mas asseguro seu surpreendente desfecho, que somente por Nelson Rodrigues poderia ganhar vida.

Ao criticar tanto o jornalismo quanto a maneira qual se soluciona um crime, o autor mostrou um lado obscuro do ser humano, que se instigado a aparecer pode causar danos irreversíveis, sempre em busca da verdade.

Nesse ponto, confirma-se a inquisição do sistema sendo levado apenas por uma competente pessoa em sua função inquisitiva, e num mundo de outras pessoas que conheciam Arandir e somente queriam ver o desfecho da história com a certeza absoluta já formulada em seus discursos provenientes da sociedade do espetáculo: ele era culpado por sua inocência e virtude.


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Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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