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Bem jurídico, racionalidade e justificação das normas penais (II)


Por Fábio da Silva Bozza


Leia a Parte 1

O conceito de bem jurídico pode cumprir uma função extrassistemática, ao analisar os pressupostos materiais de justificação da norma penal, e uma função dogmática, dirigida à sistematização e interpretação dos tipos penais. No entanto, as duas funções decorrem da forma como se enuncia o conceito de bem jurídico.

O fundamento de justificação de uma norma penal não pode ser realizado a partir de um postulado racional a priori, absoluto. Há que se trabalhar com um critério relativo de injusto, em que se verifique uma relação entre a preservação da segurança jurídica e a correção da decisão de afirmar uma conduta como criminosa (TAVARES, 2003, p. 79).

De acordo com Habermas, as decisões corretas são aquelas que se realizam diante das circunstâncias de cada caso, razão pela qual não apresentam o caráter de universalidade. Uma norma somente será adequada quando, na sua aplicação, considerar todas as circunstâncias da situação e, em comparação com outras normas, possa ser avaliada (TAVARES, 2003, p. 81).

A fixação de critérios para uma racional correção das decisões tem como pressuposto diferenciar princípios de argumentação de valores. Os princípios estão atrelados a normas, e, da mesma forma, ligados a valores, que dão o caráter de universalidade às normas. Já os valores relacionam-se com finalidades, objetivos (TAVARES, 2003, p. 80).

O fato de as normas jurídicas possuírem a característica de universalidade não significa que elas devem ter como objetivo criar uma sociedade moralmente correta, pois moral e normas jurídicas são coisas diferentes. Levando em consideração que sobre a comunidade existe a intervenção de um Estado instituído, a norma jurídica não pode ser entendida como imperativos morais a priori, mas sim como norma reguladora de condutas dentro de determinada comunidade (TAVARES, 2003, p. 80).

Tendo em vista que os direitos fundamentais são valores que estruturam uma ordem democrática, devem ser considerados os únicos valores universais. Por essa razão, numa ordem democrática, as normas não têm que ser, necessariamente, orientadas pelos direitos fundamentais, sendo suficiente que não os contradigam. Os direitos fundamentais devem ser entendidos como limites negativos a toda norma jurídica (TAVARES, 2003, p. 80).

No entanto, se uma norma jurídica limitar um direito fundamental, ela apenas se justifica se tiver como objetivo a proteção de outro direito fundamental. E esse objetivo não é suficiente, a norma restritiva de direitos fundamentais apenas pode ser reconhecida como válida se for adequada, no sentido de ser apta a atingir o objetivo a que se propõe, e necessária, ou seja, para atingir o objetivo a que se propõe, não exista meio menos restritivo do direito fundamental que a norma atinge.

Quanto à justificação racional das normas dentro de uma teoria do discurso, para que ela possa ser considerada correta, deve, necessariamente, passar por duas fases de avaliação. A primeira refere-se à averiguação do respeito às condições ideais de discurso: a) necessidade de que os proferimentos sejam gerais e produzam entendimento idêntico entre os falantes; b) publicidade e inclusão geral, participação com direitos iguais, respeito e reconhecimento mútuo, responsabilidade por parte dos falantes, sinceridade (vontade dos falantes em se entender) e autonomia (imunização contra coerções externas e internas). A segunda refere-se às condições do discurso prático, ou seja, se se evidenciam a adequação, necessidade e proporcionalidade da norma (HABERMAS, 2009, p. 254).

Mas a justificação pelo procedimento democrático, por si só, não é suficiente para legitimar a norma jurídica. Habermas pretende limitar a legitimação pelo procedimento (com suas condições ideais de fala) por meio da legitimação sob o marco da autodeterminação dos cidadãos e da proteção dos direitos humanos, pois estes institucionalizam as condições comunicativas para a formação de uma vontade política racional (HABERMAS, 2009, p. 254).

Desse raciocínio conclui-se que o injusto penal não decorre do simples procedimento democrático regular, mas, nas palavras de Tavares, passa “ser visto dentro de uma relação dialética entre a autonomia da pessoa humana e as formas de sua institucionalização, o que pode contribuir para uma reedificação do sujeito no direito e, principalmente, no âmbito das formulações acerca dos fundamentos que podem ser levados em conta na definição das causas de justificação.” (TAVARES, 2003, p. 85).

Nessa linha de raciocínio, percebe Baratta (2003, p. 329) que o sistema penal se caracteriza por ser “um aspecto da expropriação ideológica que sofrem os sujeitos de necessidades e direitos humanos por parte do sistema e da cultura dominante, com referência à percepção do conflito em que se envolveram”. Os criminalizados, como em regra não passam de objeto de um tratamento institucional, não participam da definição legal dos conflitos do qual fazem parte, tampouco da construção das formas e dos instrumentos institucionais de intervenção destinados à solução de seus problemas, de acordo com suas verdadeiras necessidades. Assim, em relação a eles as normas penais não apresentam qualquer legitimidade.

Se as coisas são assim, o conceito de bem jurídico não pode ser utilizado para legitimar a incidência de uma norma penal, mas apenas para limitar seu campo de incidência.

Assim, o bem jurídico deve ser entendido como um valor preferencial do legislador que funcione como referência para a interpretação dos tipos penais de forma a vincular a possibilidade de incriminação de uma pessoa à prova de que seu comportamento lesionou ou colocou em perigo real referido bem. Além disso, fundamental que o bem jurídico seja referido ao desenvolvimento humano, e não a funções estatais.


REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro.  Princípios del derecho penal mínimo. (Para una teoria de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal). In Criminologia y sistema penal. Montevidéo/Buenos Aires, B de F, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2009.

TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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