Bem jurídico, racionalidade e justificação das normas penais
Por Fábio da Silva Bozza
Com a transformação de uma sociedade liberal-individualista em uma sociedade de comunicação pós-moderna, verifica-se a constante perda de conteúdo material do conceito de bem jurídico, ao ponto de, segundo alguns autores (Jakobs), entender-se que o conceito possa ser substituído pelo de violação da própria norma.
É possível vincular referida transformação, como o faz Tavares, ao processo de evolução da vida material. A noção de crime como violação de um bem, objeto de proteção da norma, relaciona-se com o processo econômico de uma sociedade fundada no sistema de troca de mercadorias, na qual o bem jurídico é criado no contexto da grande produção e do incremento do consumo. Relacionada à transformação do capitalismo, com a chamada fetichização da mercadoria, tem início o processo de perda de substrato material do conceito de bem jurídico. Marx tentou evidenciar como o valor de uso dos bens colocados em circulação escondia o seu valor de trabalho e as contradições subjacentes ao processo produtivo (TAVARES, 2003, p. 185).
A gradativa perda de materialidade fez com que, na época em que avançava o capitalismo financeiro (em que os títulos de créditos passam a ser considerados, por si, mercadorias), o bem jurídico fosse entendido como mero pressuposto formal da incriminação (Binding). Agora, num capitalismo de serviço, propõe-se a substituição do conceito de bem jurídico pelo de estabilização da norma, o que pode ser, em certa medida, pensado como reflexo da reprodução da vida material contemporânea, em que não mais se verificam objetivos edificantes, satisfazendo-se a sociedade com manutenção de regras de organização. Com isso, o direito penal passa a proteger funções que mantêm a organização social (TAVARES, 2003, p. 186).
Como destaca Sgubbi, o ordenamento jurídico se converte em uma disciplina dirigista, que se manifesta por meio de uma detalhada regulamentação da atividade humana, a serviço da qual se coloca o direito penal (SGUBBI, p. 57). O que se pune é a inobservância de regras de organização, não a realização de atos socialmente danosos (MOCCIA, 1997, p. 115).
De acordo com Sergio Moccia, esse pensamento tem como base a ideia de que o funcionamento eficiente da atividade de controle estatal, desde uma visão não ideológica da vida de relação social, admite, na solução de um caso concreto, o sacrifício da rígida defesa de valores abstratos ou de valores que transcendem ao problema que se apresenta. “Em nome de um exasperado pragmatismo eficientista, dá-se crédito a uma sinergia de elementos e perspectivas, distantes uns dos outros, que dão vida a uma convivência ‘débil’ e não a uma síntese ‘forte’ de componentes conciliáveis” (MOCCIA, 1997, p. 115). Isso se percebe com a utilização do direito penal para a tutela da funcionalidade dos mecanismos de intervenção da administração pública, por meio da artificiosa criação de bens jurídicos, com o duplo fim de salvar dificuldades na redação do tipo e de superar, com facilidade, problemas de prova” (MOCCIA, 1997, p. 116).
Se o direito penal e, consequentemente, o conceito de bem jurídico são reflexos do processo de evolução da vida material, se esse processo provocou uma sociedade fundada na desigualdade e na opressão, no genocídio de parte da população, que deixa de ser considerada sujeito por não poder consumir, tem-se duas opções: ou deve ser feita uma dogmática jurídica como reflexo/descrição das relações sociais, e os conceitos desenvolvidos servirão como instrumento de legitimação da estrutura social, ou, por uma questão ética, deve-se tomar partido em favor da maioria de excluídos, e desenvolver categorias jurídicas destinadas à contenção do poder punitivo, que apenas se presta a manter a configuração social injusta e desigual.
Diante disso, a postura a ser tomada nos futuros artigos sobre o tema será a segunda, razão pela qual o conceito de bem jurídico deve ser delineado com o objetivo de utilizá-lo como limite ao poder punitivo, e não como objeto de proteção da norma. Ademais, ao se rechear o conceito de bem jurídico, deve-se ter em consideração que ele deve ter uma função crítica ao sistema, no que reside sua capacidade de rendimento. Dessa forma, a capacidade de rendimento da teoria do bem jurídico guarda menos relação com o conceito do que com a postura ético-política adotada pelo aplicador do direito. A atividade do intérprete poderia suprir as insuficiências dogmáticas.
No entanto, como se sabe que a atitude crítica passa longe da maioria dos aplicadores do direito penal, nos próximos artigos realizaremos um desenvolvimento teórico crítico-dogmático que poderá ser de alguma serventia.
REFERÊNCIAS
MOCCIA, Sergio. De la tutela de bienes a la tutela de funciones: entre ilusiones postmodernas y reflujos iliberales. In SILVA SÁNCHEZ, Jesús María (org). Política criminal y nuevo derecho penal. Libro homenaje a Claus Roxin. Barcelona: Bosch, 1997.
SGUBBI, Filippo. El delito como riesgo social. Investigación sobre las opciones en la asignación de la ilegalidad penal. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, s/f.
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003.