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Benefícios penais e garantias processuais na Lei de Repatriação


Por Bruno Milanez


Nas duas últimas colunas, analisamos a Lei 13.254/16 – que cria o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária de ativos de origem lícita remetidos e/ou mantidos irregularmente no exterior –, tanto no que se refere à presunção constitucional de inocência como no que tange aos deveres de informação daquele que adere voluntariamente ao programa governamental. No texto de hoje, pretende-se analisar os benefícios penais e as garantias processuais positivadas tanto na Lei de Repatriação como na Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil, que regulamentou a Lei Federal.

No que se refere às vantagens penais, certamente o maior incentivo à adesão voluntária ao programa de regularização consiste na extinção da punibilidade dos delitos praticados para remeter e/ou manter os ativos de origem lícita irregulares no exterior. Necessário reconhecer, por exemplo, que para remeter irregularmente ativos lícitos ao exterior, o cidadão necessariamente incorreu na prática de um (ou alguns) crime(s), como a evasão de divisas, a sonegação fiscal e/ou a falsidade ideológica.

Assim, a regra do art. 5º, § 1º e incisos, da Lei de Repatriação, prevê que “o cumprimento das condições previstas no caput antes de decisão criminal, em relação aos bens a serem regularizados, extinguirá a punibilidade dos crimes” tributários (inc. I), de sonegação fiscal (inc. II) e sonegação previdenciária (inc. III), falsificação de documento público ou particular, falsidade ideológica e uso de documento falso, quando sua potencialidade lesiva se esgotar na prática dos crimes antes citados (inc. IV), operação irregular de câmbio com o fim de evadir divisas (inc. VI) e lavagem de dinheiro, quando o crime antecedente tiver sido praticado no contexto da remessa ou manutenção irregular dos ativos no exterior (inc. VII).

Trata-se de vantagem bastante expressiva, na medida em que a soma da pena privativa de liberdade para os delitos varia entre 10 (dez) anos – em seu patamar mínimo – e mais de 40 (quarenta) anos, se consideradas as penas máximas.

E não se deve perder de vista que a extinção da punibilidade atinge não apenas a sanção privativa de liberdade, mas igualmente as penas pecuniárias, de modo a se desvelar uma vantagem econômica bastante significativa, para além das vantagens tributárias (redução de tributos e multa de regularização) previstas na Lei.

Oportuno recordar que o efeito penal da extinção da punibilidade não decorre da simples adesão ao programa, mas depende do cumprimento integral de todas as obrigações tributárias, fiscais e documentais previstas na Lei de Repatriação (art. 5º, caput). Ademais, deve-se ter em mente que a Lei de Repatriação não é um mecanismo para ‘esquentar’ ativos provenientes de condutas criminosas, na medida em que somente se admite a regularização de ativos cuja origem decorra de atividade economicamente lícita (art. 4º, IV e art. 5º, § 5º).

Também no que se refere à extinção da punibilidade, a regra do art. 4º, § 5º, da Lei de Repatriação, prevê que se o ativo foi mantido em nome de interposta pessoa – comumente conhecida como laranja –, a extinção da punibilidade também atinge este terceiro. A previsão é bastante oportuna, na medida em que a interposta pessoa – que cedeu seu nome para que o bem fosse ficticiamente mantido em sua titularidade – necessariamente é coatora ou partícipe do(s) crime(s) praticado(s) pelo real titular do ativo irregularmente remetido/mantido no exterior. E certamente sem esta previsão, correr-se-ia o risco de anistiar a pena de quem praticou a conduta principal e eventualmente punir quem praticou a conduta secundária ou acessória.

Outra vantagem penal bastante relevante contida na Lei de Repatriação pode ser explicada a partir de um exemplo hipotético: suponha-se que um cidadão está sendo processado pela prática de um crime no contexto da remessa ou manutenção irregular de ativos no exterior (evasão de divisas e falsidade ideológica, por exemplo). Imagine-se ainda que no processo criminal não há sentença condenatória ou que o cidadão foi absolvido e o Ministério Público recorreu da absolvição, pleiteando a reforma e consequente condenação do acusado. Em ambos os casos, corre-se um risco – maior ou menor – de condenação.

Nestas hipóteses, a Lei de Repatriação prevê que o cidadão pode aderir ao programa de regularização e, caso cumpra com todos os requisitos legais antes do trânsito em julgado da eventual condenação, extingue-se a punibilidade do delito praticado (art. 5º, § 2º, II). Como se vê, a depender do risco de condenação – a ser avaliado em cada caso concreto –, a adesão ao programa pode ser uma excelente estratégia defensiva.

Especificamente no que diz com as garantias processuais, a regra do art. 4º, § 12, I, da Lei de Repatriação, prevê que as informações prestadas por quem adere voluntariamente ao programa de regularização não poderão, de qualquer modo, ser utilizadas “como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal.” Esta previsão é complementada pela regra do art. 32, da Instrução Normativa 1.627/16, da RFB, que veda o compartilhamento das informações prestadas com quaisquer dos entes federados (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), prevendo ainda que as informações prestadas estão acobertadas pelo sigilo fiscal (art. 31, da Instrução).

Em uma análise superficial, a regra parece desnecessária. Afinal, se a Lei de Repatriação prevê a extinção da punibilidade em relação aos delitos praticados para remeter/manter os ativos de origem lícita irregularmente no exterior, por qual razão teria interesse em investigar delitos que abdicou expressamente de exercer o direito de punir? É paradoxal e contraproducente abrir mão do direito de punir e, por outro lado, investigar/processar o cidadão que aderiu ao programa de regularização, por crimes ‘anistiados’.

Há, portanto, outras razões para a existência da regra. Consegue-se, em análise mais acurada, identificar duas funções no dispositivo legal, para além da função simbólica de estímulo a adesão ao programa.

Em primeiro lugar, deve-se recordar que, em muitos casos, o cidadão necessitou do auxílio de terceiros para remeter ou manter o ativo irregularmente no exterior. Exemplificativamente, pode-se pensar em hipótese na qual o indivíduo remeteu o ativo ao exterior com o auxílio de um doleiro. Nesse caso não é apenas o cidadão que adere ao programa de regularização quem praticou uma conduta delituosa, mas também o doleiro é coautor ou partícipe do crime. Porém a Lei de Repatriação não extingue, ao menos expressamente, a punibilidade desse terceiro (doleiro, no caso do exemplo).

Essa hipótese serve para demonstrar que a Lei de Repatriação prevê uma garantia processual em relação a terceiros – coautores ou partícipes, que auxiliaram na remessa/manutenção dos ativos de forma irregular no exterior –, na medida em que estas pessoas não poderão ser investigadas ou processadas criminalmente unicamente a partir das informações prestadas por quem adere voluntariamente ao programa de regularização. Oportuno reforçar – conforme visto na coluna da semana passada – que quem adere ao programa sequer possui a obrigação legal de declinar os nomes dos coautores ou partícipes dos delitos praticados para remeter/manter os ativos no exterior (com exceção do laranja que tem sua punibilidade extinta).

A segunda razão para a existência do dispositivo parece velada e menos nobre. É que a Lei de Repatriação é extremamente branda no que se refere à demonstração da origem lícita do ativo a ser regularizado, bastando a “declaração do contribuinte de que os bens ou direitos de qualquer natureza declarados têm origem em atividade econômica lícita” (art. 4º, § 1º, IV).

Ainda que exista a probabilidade – bastante reduzida – de que a Receita Federal do Brasil possa exigir posteriormente documentos comprobatórios das declarações prestadas, a blindagem investigativa prevista no art. 4º, § 12, I, da Lei de Repatriação pode estimular pessoas a tentar regularizar ativos de origem ilícita. Obviamente, essa tentativa é arriscada, mas não há como negar a sua possibilidade concreta.

Por derradeiro, outra garantia processual está positivada na regra do art. 9º, da Lei de Repatriação, que versa sobre a exclusão do contribuinte do programa de regularização. Nestes casos, “a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte” – g.n. – (art. 9º, § 2º).

Trata-se de garantia de extrema relevância, pois ao aderir voluntariamente ao programa de regularização, o cidadão acaba por confessar extrajudicialmente a prática de um ou mais crimes, vinculados à remessa/manutenção do ativo no exterior. E o que a Lei de Repatriação faz é inadmitir que essa confissão extrajudicial – e os documentos que o acompanham – sirvam se supedâneo exclusivo ao início ou continuidade de investigações criminais em desfavor do cidadão.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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