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Big Brother Brasil e o cancelamento de corpos

Big Brother Brasil e o cancelamento de corpos

Por Cibele de Souza e Esther Brito Martins

Em tempos de pandemia, no qual grande parte dos brasileiros estão em isolamento social, com o objetivo de diminuir o contágio e, consequentemente, o avanço do COVID-19 no País, surge o objeto de análise do presente ensaio, qual seja: a naturalização do ódio e a reprodução da ideia de “cancelamento de corpos”[1] através da interação do público do Reality Show BBB 20[2] nas redes sociais instagram e twitter.

É consenso entre os estudiosos do tema o espaço que as redes sociais alcançam na formação e reprodução da opinião pública (senso comum) na sociedade brasileira, o que implica, em alguma medida, especificidades ainda mais problemáticas ao campo de estudos da violência de massas. As questões que envolvem a ordem do “cancelamento” e/ou “linchamento virtual” abrangem um risco incomensurável, fato que é, por vezes, desconhecido e negligenciado pelas pessoas no uso das redes sociais.

No cenário atual, em que a TV GLOBO vem perdendo a hegemonia sobre o entretenimento da população brasileira; fato de extrema relevância, em um País, que por décadas, fora influenciado diariamente em sua vida e hábitos pela grade do canal; o estabelecimento de um novo modelo de interação do programa com as novas mídias, a partir da repaginação do reality com a divisão de participantes “famosos/convidados” e “anônimos/inscritos” suscita diversos pontos de reflexão sobre a influência das redes sociais na sociedade globalizada e desta para a difusão de uma cultura do ódio.

As constantes mudanças ocasionadas com o surgimento da internet, desde a década de 90, acabaram reformulando o campo de interação social bem analisado por diversos estudiosos da etnografia digital. Com efeito, pretende-se aqui analisar as implicações legais de dito comportamento. O ensaio irá focar no “cancelamento” de alguns participantes a partir da interação da mídia convencional com as novas redes de mídias sociais e suas consequências no mundo jurídico, valendo-se à título ilustrativo da interação dos telespectadores no “instagram” e “twitter” a partir de alguns fatos vivenciados e assistidos na edição do BBB 20.

A naturalização do ódio sobre os corpos cancelados nas redes sociais

A popularização das tecnologias na vida das pessoas acaba por dimensionar a extensão da problemática envolvida com a normalização de novas formas de comunicação e resolução de conflitos por meio da dispersão do ódio[3]. Segundo Zaffaroni, os meios de comunicação em massa, são considerados uma verdadeira fábrica de ilusões, das quais são capazes de recriar uma realidade através da distorção de fatos e acontecimentos, bem como reproduzir uma indignação moral que leva à instigação da violência coletiva (ZAFFARONI, 1991).

José de Souza Martins estuda os linchamentos praticados no mundo físico, mas que perfeitamente se aplicam à situações praticadas no mundo virtual. Segundo a perspectiva do autor, as pessoas lincham para punir, mas sobretudo, para evidenciar seu descontentamento com as alternativas de mudança social que violam concepções, valores, e normas de conduta tradicional de uma determinada comunidade. Nesse sentido, percebe-se que o linchamento é um fenômeno complexo, multifacetado e expressa muito mais do que um ato episódico de violência. Retrata o empenho de um determinado grupo em “restabelecer” a ordem, onde ela foi rompida por modalidades socialmente corrosivas de conduta social (MARTINS, 2015).

Isto posto, o ambiente virtual abre possibilidades para que os conflitos sociais se disseminem e se fortaleçam, resultando, assim, em linchamentos virtuais, que são geradores de uma ideologia de destruição a grupos e formadores de estereótipos e estigmas que incitam à violência (MACEDO, 2018).  Importa esclarecer que “linchamento virtual” não é apenas uma enxurrada de críticas sobre um ato/fato praticado por um indivíduo, no entanto, para que tal fato se enquadre como “linchamento” é necessário observar a presença de uma intenção vingativa, ou seja, uma forma de reprimenda muito superior ao nível normalmente aceito.

Nesse aspecto, os ‘linchamentos virtuais’ vem ratificar o velho pensamento de “justiça com as próprias mãos” abandonado quando da composição da punibilidade moderna. À título ilustrativo, colacionamos alguns posts da plataforma Twitter e Instagram que corroboram a análise proposta:

@Carlinhosmaiaof  Não dá pra fazer linchamento virtual e depois vir falar sobre bullying e outras coisas. E desculpem, por não está com a maioria. Pra gostar de alguém não precisa cancelar a outra. Comparam ivy com corona com hitler. Imaginar sair e saber disso. Empatia 0. 10:25 AM · 18 de abr de 2020 em Penedo, Brasil·Twitter for iPhone

bianca 8 de abril.Eu to com pena da Marcela tendo que lidar com esse linchamento virtual. Mas também sei que ela é uma mulher madura e, mesmo que seja difícil, vai saber passar por isso. Me dói pessoas continuarem indo nas redes sociais dos participantes pós eliminação destilar ódio gratuito.

Para além dos participantes do Reality Show, o próprio apresentador sofreu represálias por meio das redes sociais Twitter e instagram por um discurso apresentado na condução do programa. Tais fatos demonstram que no tribunal da internet ninguém está à salvo, nem o próprio âncora do programa ao cumprir sua função. Percebe-se uma extensão do poder do ‘cancelamento de corpos’ sobre outras esferas da vida cotidiana, qual seja: o ambiente de trabalho. Tal cancelamento que, inicialmente,  parecia um meio de resistência do ofendido frente o ofensor, atualmente, torna-se um comportamento paradigmático.

Nesse imbróglio, comportamentos e posicionamentos divergentes fomentam os sentimentos de medo, desconfiança e ódio que são cotidianamente reproduzidos em atos de julgar, punir e vingar. (MACEDO, 2018) A simples discordância pode gerar uma onda de “haters” e comentários de ódio, inclusive, de morte. É a imposição do eu e a perda do nós, do senso de coletividade.

Diante das insurgências da nova modernidade um estado neoliberal surge, então, o medo criado por um mundo líquido, onde valores e relações humanas são facilmente dissolvidos (BAUMAN, 2013). Nesse contexto, indaga-se: quais são as concepções éticas e legais imbricadas na normalização destes ‘cancelamentos de corpos’? Como tal atitude vem performando a cultura brasileira? O tema segue incitando questionamentos urgentes, com efeito,  o ensaio irá restringir a análise às possíveis consequências legais de dita “cultura do cancelamento” na sociedade brasileira.

O discurso de ódio frente à legislação brasileira

A priori, a sensação de liberdade no mundo virtual, faz com que o indivíduo se sinta protegido atrás de uma tela, por perfis fakes que, muitas vezes, se valem do anonimato para proferir mensagens de ódio sempre abarcados pela  bandeira da liberdade de expressão.

A tranquilidade com que as pessoas dissipam o ódio e destilam palavras ofensivas nas redes, muito se deve ao fato de não haver, ainda, uma lei específica no país que trate sobre o linchamento virtual. O Marco Civil da Internet, oficialmente chamado de Lei n° 12.965/2014, é a norma que regula o uso da Internet no Brasil por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para quem usa a rede, bem como da determinação de diretrizes para a atuação do Estado, entretanto, dita legislação apresenta diversas lacunas.

Atualmente, há um Projeto de Lei nº 7.582/2014 que está em tramitação no Congresso Nacional, que tem como objetivo definir os crimes de ódio e intolerância e criar mecanismos para coibi-los, nos termos do inciso III do art. 1º e caput do art. 5º da Constituição Federal.

Todavia, mesmo com essa lacuna na legislação quanto aos crimes de ódios proliferados nas redes, ressalta-se, que há outros crimes cabíveis em igual situação, são eles:

  • os crimes contra a honra: calúnia, difamação e injúria, previstos nos artigos 138 a 140 do Código Penal.;
  • crime de violação da intimidade, para exposição/humilhação pública. No art. 5º, inciso X da  Constituição Federal de 88 tratou de proteger a privacidade, e assim dispõe: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
  • crime por discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, em qualquer meio de comunicação, não isentando a Internet, previsto no art. 1º da lei 7.716/89.

Com efeito, as normas legais parecem não abranger de forma eficaz a problemática suscitada pelos “linchamentos virtuais”. Tal fato alcança incontáveis esferas da vida civil e pública dos indivíduos, bem como corrói moralidades e preceitos éticos que são basilares ao Estado Democrático Direito. Se o discurso de ódio fere o diálogo e a diversidade, fere também a democracia. E cabe a nós, proteger.

Considerações finais

O questionamento central das etnografias digitais e da mídia na sociedade de massas a partir da revolução digital convola a necessidade de se compreender o ponto de vista do indivíduo que acaba sendo parte desta ação, como demonstrado anteriormente, ato/fato passível de enquadramento criminal. Entretanto, a ausência de um regramento específico sobre o tema, bem como a linha tênue que permeia os direitos a liberdade de expressão acabam fomentando a difusão desse modelo de interação social desproporcional.

Nesse sentido, em um programa que a produção perde o poder sobre os atos e falas dos participantes visualizamos uma interação fina entre público e o indivíduo, que resulta na instantânea  aceitação ou repulsa ao indivíduo. Olhar para as hostilidades virtuais a partir dos cancelamentos de participantes do programa BBB20 é compreender a problemática social que fomenta a difusão do ódio em comunhão aos valores ‘éticos’, culturais e sociais da população brasileira.

A questão invoca prudência, vez que embora os linchamentos sejam virtuais, ou seja, sem violência física, não se encerram no ciberespaço, ocasionando influências diretas em aspectos psicológicos, materiais e sociais da vida dos indivíduos. As extensões dos atos se sobrepõe socialmente com dispersão da interação social a partir do ódio.


REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

CAMPBELL, B. e MANNING, J. Microaggressions and Moral Cultures, Comparative Sociology, Editora Brill, NY, v.13, Issue 6, p. 692-726, 2014.

MACEDO, Karen Tank Mercuri. conflitos sociais contemporâneos: possíveis causas e consequências dos linchamentos virtuais. Revista Humanidades e Inovação v.5, n. 4 – 2018. p. 198-208.

MARTINS, José de Souza. Linchamentos, a Justiça Popular no Brasil. 2. ed. São Paulo: contexto, 2015.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema  penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


NOTAS

[1] Diversos participantes tiveram seus nomes envolvidos com o cancelamento virtual. Ver reportagens: ‘Linchamento virtual não resolve o problema’, diz Tiago Leifert; BBB 20: Como Marcela foi de favorita para ‘cancelada’ em poucos dias?

[2] Programa de televisão que estreou em janeiro de 2002 no Brasil onde  competidores ficam confinados em uma casa cenográfica, sendo vigiados por câmeras 24 horas por dia, durante 90 dias.

[3] Nesse sentido, os escritos de Campbell e Manning, David Garland, Donald Black, Roberta Senechal e José de Souza Martins analisam questões que permeiam as temáticas imbricadas na análise proposta.


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