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Biohacking: quando nem o DNA está a salvo de ataques cibernéticos


Por Bernardo de Azevedo e Souza


Semanalmente, um grupo de cientistas amadores se reúne na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, para trabalhar, discutir e aprender uns com os outros. Os encontros ocorrem no laboratório comunitário da Genspace, organização sem fins lucrativos fundada por entusiastas da ciência oriundos de diferentes áreas do conhecimento. Artistas, engenheiros, escritores e biólogos formam, nesse ambiente, a diversidade necessária para incentivar a inovação. Tudo em prol de um objetivo em comum: promover o acesso à biotecnologia.

Os membros da Genspace praticam aquilo que se convencionou chamar de biohacking. A expressão se aplica a toda e qualquer técnica avançada com o propósito de aprimorar a performance humana. Para o movimento biohacking, o próximo passo do ciclo evolutivo não terá influência da natureza, mas de esforços próprios e coletivos (cultura Do It Yourself – DIY: “faça você mesmo”). Ao unir a ciência e a tecnologia, abrange tanto a projeção e instalação de aprimoramentos corporais quanto a manipulação genética dentro da própria residência.

No primeiro segmento (aprimoramentos corporais), constatam-se os mais inusitados usos da biotecnologia ao redor do globo. Por mais inacreditável que pareça, jovens estão implantando, em si próprios, ímãs de neodímio. Por meio de um bisturi, e com o auxílio de uma tesoura cirúrgica, inserem o item no dedo indicador (assista aqui). A finalidade, segundo afirmam, é obter um sexto sentido. O ímã faz com que se sintam os campos eletromagnéticos dos dispositivos eletrônicos. A reação, semelhante a uma coceira, tem diversas intensidades, que variam conforme a frequência emitida pelos aparelhos. Não satisfeitos, os biohackers (ou ciborgues, como também se intitulam, veja aqui), utilizam os dedos cibernéticos para “pescar” itens metálicos, como clipes e moedas.

Embora se possa questionar a real utilidade de sentir a “vida” de smartphones, computadores e veículos através de imãs de neodímio implantados nos dedos, há outras aplicações, na esfera da biotecnologia, consideradas mais relevantes. O artista Neil Harbisson, por exemplo, desenvolveu um dispositivo eletrônico que lhe permite “ouvir” as cores. Harbisson, que nasceu com acromatopsia – enfermidade que lhe faz enxergar o mundo apenas em preto e branco –, hoje, com o auxílio de um “olho eletrônico” (eyeborg) diretamente conectado ao seu cérebro, é capaz de identificar as cores através de ondas sonoras.

O aparelho funciona como uma câmera que lê as cores colocadas em frente ao indivíduo, convertendo-as, de imediato, em escalas musicais (assista aqui). À semelhança da Cyborg Foundation, criada por Harbisson no ano de 2010, diversos institutos estão aderindo ao movimento biohacking,  incentivando pesquisas, colaborando com invenções inovadoras e promovendo debates acerca dos direitos destes ciborgues.

No segundo segmento (manipulação genética), verifica-se que as atividades desenvolvidas em laboratórios comunitários vêm proporcionando a construção de equipamentos com o uso de engenharia reversa, a modificação genética de bactérias, e a decodificação do DNA. Em palestra veiculada em 2012 (assista na íntegra aqui), Ellen Jorgensen, co-fundadora da Genspace, apontou que a organização tem realizado significativos avanços desde sua criação. Confiante, a cientista acredita que existe algo incomum nos laboratórios da sede, algo que eles podem oferecer à sociedade e que não há em qualquer outro lugar. Para ela, criar espaços para biohackers em diversas localidades mudaria a concepção de quem poderia trabalhar com biotecnologia. “Se todos se envolvessem, quem sabe o que poderíamos conquistar?”, indaga Jorgensen.

Embora iniciativas como a Genspace sejam absolutamente válidas, dado o potencial de criar vacinas e curas para doenças terminais, o ponto nevrálgico da discussão reside nos riscos que surgem a logo prazo. O consultor sênior da Interpol Marc GOODMAN, que não se considera alarmista, tampouco pessimista extremo, mas “irracionalmente otimista” (2015, p. 8 e 364), alerta que, mesmo com todas as boas intenções, acidentes envolvendo patógenos produzidos nesses laboratórios podem ser fatais.

Na atualidade, qualquer pessoa pode obter acesso a agentes patogênicos controlados ou mesmo a agentes biológicos do Governo. O banco de dados do Nacional Center for Biotechnology Information – NCBI (veja aqui) oferece, para download gratuito, os códigos genéticos completos de alguns dos patógenos mais mortais do mundo. Biocriminosos podem “baixar” a sequência genética da gripe espanhola e criar, com o auxílio de impressoras 3D, os próprios vírus letais. É dizer: mesmo com todos os investimentos (na casa dos bilhões) por parte dos governos na tentativa de erradicar, nas últimas décadas, por exemplo, a poliomelite, amanhã um criminoso ou apenas um curioso poderá reintroduzir a doença no mundo sem maiores dificuldades, ou criar novos vírus, ainda mais letais.

A biotecnologia e a biologia sintética têm o potencial de trazer vantagens revolucionárias para os cartéis de drogas existentes. Se já é possível modificar e reprogramar geneticamente bactérias geneticamente para que produzam THC, o ingrediente ativo da maconha (veja aqui), narcotraficantes sequer precisarão, nos próximos anos, plantar milhares de hectares de cannabis sativa. Por que correriam o risco de ser flagrados por aeronaves de vigilância se podem obter os códigos genéticos dos ingredientes ativos da substância ou mesmo formatar as próprias drogas com uma impressora 3D? Figuras como Pablo Escobar e El Chapo, que primavam pelo cultivo de plantas e destilação dos produtos para a criação e distribuição de drogas no mundo todo, serão naturalmente substituídas por novos traficantes sintéticos.

Com os avanços da biologia sintética, bioterroristas poderiam organizar ataques devastadores. Armas biológicas personalizadas seriam lançadas para dizimar uma população inteira ou uma pessoa específica, entre milhões. Assim como, no âmbito da medicina, atacar uma única célula cancerosa – deixando intactas àquelas ao seu redor – é algo factível, bioterroristas criariam vírus sob medida, que agiria como uma arma capaz de matar personalidades públicas, políticos e/ou celebridades. Para tanto, bastaria coletar o material genético deixado na colher de um restaurante. Para GOODMAN (2015, p. 366), hackear nossa informação genética será o roubo de identidade de amanhã, especialmente à medida em que o DNA passar a ser utilizado, de forma ampla, para fins de autenticação. No futuro, portanto, nem o DNA estará a salvo de ataques cibernéticos.

Estamos, ao fim e ao cabo, enxergando somente a “ponta do iceberg”. Ainda que a maioria dos biohackers esteja atualmente hackeando para o bem, buscando até mesmo a cura do câncer, com a popularização das ferramentas tecnológicas a tendência é de que sejam criadas novas formas de criminalidade, armas biológicas ou mesmo drogas. Acreditar na possibilidade de hackear o DNA de alguém e utilizar o código genético para cometer os mais diversos delitos talvez seja, para muitos, um devaneio, pois cenários como esses normalmente estão relegados ao âmbito da ficção científica. Mas a história registra convicções céticas semelhantes no passado, que se mostraram, ao longo dos últimos séculos, absolutamente equivocadas:

1830 – “viajar em alta velocidade sobre trilhos não é possível porque os passageiros, sem poder respirar, iriam morrer de asfixia” (Dionysius Lardner, escritor científico);

1876 – “este ’telefone’ tem desvantagens demais para ser considerado um meio de comunicação, não tem valor algum para nós” (memorando interno da Western Union); 

1895 – máquinas voadoras mais pesadas que o ar são impossíveis” (Lord Kelvin, matemático e físico britânico);

1903 - “o cavalo está aqui para ficar, mas o automóvel é apenas uma moda” (Horace Rackham, Presidente do Michigan Savings Bank);

1936 – “um foguete nunca será capaz de sair da atmosfera da Terra” (New York Times);

1977 - “não há razão alguma para alguém querer ter um computador em casa” (Ken Olsen, presidente da Digital Equipment Corporation).

Em se tratando de tecnologia, o impossível parece, ao final, sempre se tornar viável.


REFERÊNCIAS

GOODMAN, Marc. Future crimes: tudo está conectado, todos somos vulneráveis e o que podemos fazer sobre isso. Trad. Gerson Yamagami. São Paulo: HSM Editora, 2015.

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