ArtigosDireitos Humanos

A chacina na favela Nova Brasília e a condenação do Brasil em corte da OEA

A chacina na favela Nova Brasília e a condenação do Brasil em corte da OEA

Na semana retrasada foi publicada a sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Favela Nova Brasília versus Brasil.

A sua maior importância reside no fato de tratar-se do primeiro caso brasileiro na Corte Interamericana envolvendo o tema da impunidade em casos de violência policial. Revelando-se, portanto, paradigmático e vinculante das ações a serem implementadas no enfrentamento da violência policial em âmbito interno.

Como resumo do caso, podemos referir que nos dias 18 de outubro de 1994 e 08 de maio de 1995, agentes da Polícia Civil do RJ, ao participarem de operações na Favela Nova Brasília, situada dentro do Complexo do Alemão, foram responsáveis por 26 execuções extrajudiciais, tratando-se algumas das vítimas de adolescentes que teriam sido anteriormente à execução submetida à violência sexual e atos de tortura. As mortes teriam sido apuradas pelas autoridades policiais sob o manto dos chamados ‘autos de resistência à prisão’.

Tendo em vista que o Brasil não aderiu às recomendações emitidas pela Comissão Interamericana no caso em comento, o mesmo, então, seguindo o procedimento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, foi encaminhado pela Comissão à Corte Interamericana para julgamento em maio de 2015.

A Comissão já teria recomendado ao Brasil uma investigação exaustiva, a ser conduzida por autoridades imparciais para que fosse possível a responsabilização dos agentes autores dos fatos ocorridos na oportunidade. Além disso, recomendou a extinção imediata da prática de registrar as mortes cometidas pelos agentes policiais como ‘resistência à prisão.’

Também, a instituição de um sistema de controle externo e interno e de prestação de contas para tornar mais efetivo o dever de investigar, bem como que o Estado brasileiro treinasse suas forças policiais para que estas pudessem saber lidar com os setores mais vulneráveis da sociedade, uma vez que tais setores são alvos constantes da chamada seletividade penal e policial.

A Corte, por sua vez, reconhece que a violência policial representa um problema de Direitos Humanos no Brasil. Nesse sentido, relatório divulgado anteriormente pela Anistia Internacional, em fevereiro de 2015, já colocava o Brasil no topo dos países mais violentos do mundo, pois seriam pelo menos 130 homicídios por dia, sendo que a sensação de impunidade é incentivadora, uma vez que 85% dos homicídios não são solucionados no Brasil, citando como os principais fatores para a crise no Brasil a violência policial, registros de tortura e a falência do sistema prisional.

Ao longo da sua sentença, a Corte dá conta de que entre as vítimas fatais de violência policial, no caso brasileiro, estima-se uma predominância de jovens, negros, pobres e desarmados, bem como que o Brasil ainda em 1996 já teria reconhecido perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU que era preciso tomar medidas para acabar com a impunidade das violações de Direitos Humanos atribuídas a autoridades policiais, provocadas por um funcionamento excessivamente lento das engrenagens da justiça, fruto muitas vezes da incapacidade dos Estados de realizar uma investigação policial eficiente.

Dessa forma, a Corte acabou por decidir ser o Estado brasileiro responsável pela violação do direito às garantias judiciais de independência e imparcialidade da investigação, devida diligência e prazo razoável, estabelecidas no artigo 8.1 da CADH, em relação ao seu artigo 1.1, bem como pela violação do direito à proteção judicial, previsto no artigo 25 da CADH, também combinado com o seu artigo 1.1, e a integridade pessoal, na forma do artigo 5.1, combinado com o artigo 1.1 da Convenção.

Para tanto, determina ao Brasil o dever de conduzir eficazmente a investigação em curso sobre os fatos relacionados às mortes ocorridas na incursão de 1994, com a devida diligência e em prazo razoável, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis.

No que diz com as mortes ocorridas na incursão de 1995, o Estado deverá iniciar ou reativar uma investigação eficaz a respeito desses fatos, inclusive avaliando se tais fatos não devem ser objeto de pedido de Incidente de Deslocamento de Competência, conforme prevê a CF de 1988.

Também, em relação aos fatos de violência sexual, o Estado deverá iniciar uma investigação eficaz a respeito, fornecendo, ainda, por meio de suas instituições de saúde especializadas, e de forma imediata, adequada e efetiva, tratamento psicológico e psiquiátrico de que as vítimas necessitem, após consentimento fundamentado e pelo tempo que seja necessário, inclusive o fornecimento gratuito de medicamentos, de preferência nos centros ou locais escolhidos pelas próprias vítimas.

Além da publicação da sentença, o Brasil deverá proceder a um ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional, com inauguração de placas em memória das vítimas; deverá publicar anualmente um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da Polícia em todos os estados do país, do qual deverá conter informação atualizada anualmente sobre as investigações realizadas a respeito de cada incidente que redunde na morte de um civil ou de um policial; a partir de um ano contado da notificação da presente sentença, o Estado brasileiro deverá estabelecer mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado.

No caso do RJ, o Brasil deverá estabelecer metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, bem como um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os níveis hierárquicos das Polícias Civil e Militar do RJ e a funcionários de atendimento de saúde, incluindo nesse ponto a sua jurisprudência a respeito do tema.

Por fim, o Brasil deverá adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação de delitos conduzida pela Polícia ou pelo Ministério Público, bem como o Estado deverá adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão ‘lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial’ nos relatórios e investigações da Polícia ou do MP em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial, sendo abolido o conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial, além do pagamento da indenização devida e fixada.

Considerando que a decisão da Corte Interamericana sobre a existência de uma violação de determinado direito ou liberdade estatuído na CADH, como, na espécie, é definitiva, não se encontrando limitada por quaisquer leis ou atos normativos de direito interno (art. 63 da CADH), cumpre-nos em auxílio a Corte supervisionar o cumprimento integral desta sentença, a qual nos parece paradigmática, na medida em que enfrenta e dá visibilidade a uma violência estrutural e institucionalizada que o Brasil necessita encarar se minimamente pretende uma sociedade menos violenta e mais igual.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo