Breves apontamentos sobre a evolução e o aspecto ético da colaboração premiada
Por Carlo Velho Masi
A colaboração premiada é instituto típico do sistema inquisitorial medieval, onde o colaborador demonstrava o seu arrependimento pela prática do delito. Embora antiga, a prática só passou a adquirir destaque no mundo jurídico no início do séc. XX, no âmbito da chamada Justiça Penal Negociada, que coincide com o surgimento da noção de “crime organizado”.
Na Itália da década de 70, surge o chamado Pentitismo, ou Chiamata di Correo, inicialmente voltado ao enfrentamento do terrorismo e, em seguida, direcionado à investigação das organizações mafiosas, cujo código regulaor é a omertà (conspiração ou pacto de silêncio que serve de blindagem contra o Estado). O ordenamento italiano prevê todo um regramento legislativo de tutela da cooperação dos colaboratori della giustizia, também conhecidos como pentiti (arrependidos).
Outro sistema que muito contribuiu para o desenvolvimento do instituto foi o norte-americano. Nos EUA, recebida a acusação, há uma audiência prévia de julgamento. Neste momento, aceita-se uma negociação acerca da culpa ou da inocência do acusado. É o que se chama de plea bargaining, que pode resultar na confissão da culpa (guilty plea) ou na declaração de que o arguido não pretende discutir a sua culpa (nolo contendere).
Ao Ministério Público são conferidos amplos poderes de negociação da pena e da própria imputação, em troca da declaração de culpa ou da colaboração na investigação ou persecução penal de outras pessoas.
A importância da plea bargaining reflete-se na constatação de que este é hoje o principal instituto de administração da justiça penal nos EUA, incidindo em quase 90% dos processos criminais.
Ao contrário do sistema da common law, onde vige o princípio da oportunidade, nos países da civil law, como o Brasil, prepondera a obrigatoriedade em relação à ação penal, o que representa um entrave ao adequado uso do instituto. Por isso, tem-se sustentado que essa obrigatoriedade deva ser interpretada à luz do princípio da proporcionalidade. Isso dá espaço à “oportunidade regrada”, o que significa que a lei passa a delimitar os casos em que é facultado ao Ministério Público promover ou não a acusação.
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), do ano 2000, recomenda no seu art. 26 que os Estados-parte estimulem medidas para intensificar a cooperação com as autoridades competentes para a aplicação da lei, inclusive considerando a possibilidade de redução de pena e concessão de imunidade àqueles que cooperarem de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores.
Então, o uso do instituto passou a ser uma prática internacionalmente acolhida no combate à criminalidade organizada, para a qual as técnicas tradicionais de investigação estão defasadas, em função da complexificação das atividades criminosas (argumento utilitarista).
Uma das grandes discussões que tem sido travada em torno da colaboração premiada é o seu aspecto ético. Este ponto poderia ser sistematizado em duas grandes questões: por um lado, o colaborador é identificado com a figura do traidor (e quem pode confiar na palavra desleal de um traidor, ainda mais se esse infiel tem interesse de obter um prêmio?), e, por outro, a necessidade do recurso à colaboração seria uma confissão da ineficiência do Estado na investigação do crime, tarefa que lhe é constitucionalmente atribuída. Desta forma, o Estado estaria exaltando a traição (os fins justificariam os meios), promovendo um pacto entre criminosos e autoridades.
Desvela-se aqui todo um campo de discussão acerca de uma ética própria das organizações criminosas, um espírito de solidariedade e cumplicidade entre os delinquentes, que engloba uma “lei do silêncio” e um “código de honra”.
É certo que o Direito não é apenas a norma; ele confunde-se com a moral. Mas será possível falar em moralidade no campo da delinquência? Existe um código de conduta entre os criminosos, mas este código chega a constituir uma ética própria?
Dentro de uma perspectiva funcionalista, o criminoso sendo aquele que rompe o “pacto social”, no momento em que resolve reparar a sua traição e romper com o silêncio do pacto criminoso, na realidade estaria negando a negação, ou seja, estaria colaborando para reafirmar a validade do pacto. Não há traição nisso, pois não se pode atribuir uma moral ao pacto criminoso. É nesse sentido que tem-se entendido como justificada a colaboração premiada.
Talvez a mudança de paradigma necessária aqui seja visualizar no colaborador ou no delator alguém que pode efetivamente arrepender-se da prática delituosa. Não se nega com isso que haja interesse em obter um prêmio. Todavia, seria demasiado julgar que toda colaboração/delação se dá de forma espúria e falsa, com único propósito de beneficiamento próprio ou denunciação caluniosa.
Para gerenciar esse risco, a legislação brasileira (Lei 12.850/2013) acertadamente inseriu a figura do Juiz como um terceiro (teoricamente) desinteressado, que terá o papel de garantir o cumprimento das formalidades e averiguar a consistência do acordo. O propósito é preservar as garantias do colaborador e do delatado e só reconhecer a validade da colaboração quando esta observar todos os requisitos legais e tiver real influência sobre a apuração das infrações penais apuradas.
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