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Breves considerações sobre o Processo Penal de Emergência


Por Carlo Velho Masi


A sociedade contemporânea é marcada pela velocidade e pela urgência. A aceleração do tempo potencializa o risco, afetando frontalmente o Direito Penal e trazendo consequências diretas para o processo. Aury Lopes Jr. (2005, p. 49) aponta que “vivemos numa sociedade complexa, em que o risco está em todos os lugares, em todas as atividades e atinge a todos, de forma indiscriminada”. Ocorre que o Direito permanece alheio a essa mudança de velocidade e cria mecanismos artificiais na tentativa de acompanha-la. Por isso, o processo penal contemporâneo tem se notabilizado pela antecipação de tutela e pela “simplificação” procedimental, o que, por óbvio, resulta na relativização de determinados princípios outrora intocáveis. 

Ost afirma que a urgência, de “temporalidade do excepcional” transforma-se em “exceção generalizada”, o que, no âmbito do Direito, significa a abreviação das formas, dos prazos e dos processos (OST, 2001, pp. 359-360). Fauzi Hassan Choukr (2002, p. 6) fala, neste contexto, num “Processo Penal de Emergência”, que “vai significar aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade”.

O processo penal é, por si só, um gerador de estigmatização social e jurídica, razão pela qual sua aceleração é sempre tida como uma necessidade premente. Todavia, é preciso ter o cuidado de operacionalizar esta agilização sem a supressão de direitos fundamentais (“justicialismo”). Os avanços da modernidade não só permitem, como tornam impositiva a inserção de mecanismos tecnológicos no processo, o que, além da “racionalização de uma burocracia estupidamente retrógrada e que está arraigada no ritual judiciário” (Lopes Jr; Badaró, 2006), bem pode contribuir para a diminuição da “pena processual” a que todos os réus são submetidos.

As regras do processo penal “estão em constante construção e aprimoramento, em busca de fundamentação e de legitimação”. Para Giacomolli (2011, p. 297), esta legitimação encontra-se vinculada à Constituição, “seja pela leitura das regras preexistentes, seja pela reforma posterior”.

O sistema de garantias serve de limite à incidência do poder punitivo estatal em todas as etapas processuais. Esse sistema possui duas perspectivas de atuação: uma positiva, no sentido de exigir a proteção das garantias processuais; e outra negativa, no sentido de vedar a supressão ou a relativização dessas garantias. Ele se direciona a todos os agentes processuais.

Hoje, além de ações afirmativas (protetivas), os direitos protetivos da liberdade exigem importantes abstenções para vedar a violação dos direitos e das garantias constitucionais. Por isso, a função do processo penal contemporâneo é a remoção dos obstáculos à efetivação dos direitos e das liberdades previstos na Constituição.

Ocorre que a vertente político-criminal neopunitivista, enquanto manifestação do expansionismo penal, tem impulsionado, junto às garantias negativas – de não intervenção –, a ascensão de garantias positivas ou prestacionais à segurança – deveres de prestação normativa em matéria penal (“mandados de criminalização”) –, como forma de assegurar os “direitos fundamentais da sociedade” (GLOECKNER, 2012, p. 39).

O neopunitivismo confunde-se com o chamado “Direito Penal dos Direitos Humanos”, pelo qual organismos internacionais de proteção e organizações de ativistas consideram que a reparação de violação dos direitos humanos deve ser buscada por meio do castigo penal, ainda que isso implique depreciar os direitos fundamentais dos acusados dessas violações. O marco distintivo deste movimento é a “deshumanização” e o “recrudescimento sancionador”, com a ampliação judicial do Direito e a restrição das garantias político-criminais, o que é especialmente verificável na aceleração do processo e na tipificação de novos delitos (Pastor, 2005, pp. 73-114).

Na visão contemporânea dos direitos fundamentais, desenvolvida no seio de um Estado Social e Democrático de Direito, estes possuem uma dupla dimensão, tanto no sentido de exigir uma atuação negativa do Estado – a fim de evitar interferências despropositadas – quanto de demandar uma ação positiva – um dever de proteção e tutela desses direitos –. Este “imperativo de tutela”, direcionado ao legislador, é balizado pela “proibição de proteção deficiente”, como limite inferior, e pela “proibição de excesso”, como limite superior. Portanto, na concepção de Feldens (2008, p. 207-229), “Um direito penal de intervenção mínima não se contrapõe conceitualmente a um direito penal de intervenção minimamente (constitucionalmente) necessária”.

Nada obstante, é preciso admitir que a aceitação de um “direito fundamental à segurança” traz invariavelmente algumas consequências nefastas para o processo penal, como a admissão de certas provas ilícitas (inevitable discovery e independent source); a ampliação do espectro das prisões cautelares (p. ex. novas possibilidades advindas da Lei Maria da Penha); a redução do âmbito de eficácia do Habeas Corpus (inadmissão em casos de substituição de ROC); a admissibilidade do manejo de remédios constitucionais, a fim de limitar direitos fundamentais do acusado ou apenado (p. ex. impetração de mandado de segurança pelo MP para conceder efeito suspensivo em agravo em execução de decisão que concede benefício ao apenado); a ampliação dos poderes ex officio dos juízes (p. ex. para produção antecipada de provas); e a criação de meios alternativos não previstos em lei para obtenção de provas, como o “depoimento sem dano”.

É tendência do Direito Processual Penal moderno o agravamento e a desformalização dos instrumentos tradicionais de investigação e persecução (p. ex. criação de bando de dados de perfis genéticos para fins de identificação criminal), invocando-se a efetividade da luta contra o crime e a redução dos custos do sistema de justiça penal.

Os resquícios inquisitoriais prevalecem em detrimento dos direitos do processo penal clássico. Em nome da eficácia e da luta contra a impunidade, diminuem-se substancialmente garantias, como as da presunção de inocência e do contraditório (gradual inversão do ônus da prova e inserção de juízos de periculosidade), da individualização (taxação cada vez maior das penas), da oralidade (ampliação das formas escritas), da imparcialidade do juiz (gestão da prova pelo órgão julgador) e da idoneidade da prova (admissibilidade de provas tradicionalmente consideradas ilícitas e/ou provas ilícitas por derivação) (BECK, 2004, pp. 269-270). O sujeito já ingressa no processo na posição de “culpado” e desta forma é tratado durante todo o procedimento, até que sua defesa consiga provar inequivocamente sua inocência.

Na contramão dessas tendências de relativização e flexibilização, há quem entenda que é preciso resistir; é preciso defender determinados conceitos e princípios fundamentais do Direito Penal em prol da manutenção das bases do Estado Democrático de Direito. O processo penal deveria ser, hoje mais do que nunca, muito mais uma garantia do acusado contra o arbítrio estatal, do que uma forma de aplicar rapidamente uma pena, cujo significado é artificial e meramente simbólico.


REFERÊNCIAS

BECK, Francis Rafael. Perspectivas de Controle do Crime Organizado na Sociedade Contemporânea: Da Crise do Modelo Liberal às Tendências de Antecipação da Punibilidade e Flexibilização das Garantias do Acusado. In: CARVALHO, Salo de (org.). Leituras Consitucionais do Sistema Penal Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 269-270.

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

FELDENS, Luciano. A conformação constitucional do direito penal. In: WUNDERLICH, Alexandre (Coord.) Política Criminal Contemporânea: Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 207-229, p. 229.

GIACOMOLLI, Nereu José. Exigências e perspectivas do Processo Penal na contemporaneidade. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) et all. Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Alguns Perigos do Constitucionalismo Contemporâneo no Processo Penal. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, Síntese, v. 13, n. 75, p. 34-53, ago./set. 2012.

LOPES Jr., Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: fundamentos da instrumentalidade Garantista. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.

PASTOR, Daniel R. La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del desprestigio actual de los derechos humanos. Nueva doctrina penal, Buenos Aires, n. 1, 2005.

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