Buzinar é o que para o Direito?
Por Ruchester Marreiros Barbosa
Se alguém abusar de um instrumento sonoro ou sinal acústico configura-se a contravenção penal de perturbação da tranquilidade ou crime ambiental de poluição sonora?
É muito comum a procura de reposta policial e consequentemente do sistema penal pela alegação de perturbação da tranqüilidade e do sossego.
Deverá o Direito Penal ser invocado em situações como essas?
Entendemos que depende do caso concreto e o fiel da balança do caso concreto será definido pelo norte da intervenção mínima e da fragmentariedade.
Peguemos como exemplo a BUZINA de um veículo automotor
Assim dispõe o art. 42, III da LCP:
Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
Em muitos Estados da federação há uma lei que regulamenta o ruído, denominadas de “lei do silêncio” e no Rio de Janeiro não poderia ser diferente.
Neste Estado, a medição do som, que se realiza por um equipamento denominado de decibelímetro, é o instrumento capaz de aferir se houve ou não violação da lei estadual 126/77 (Alterado pela Lei 6410/2013).
Insta salientar, que não é em qualquer hipótese, que a lei estabelece parâmetros do quantum do som, prevendo a legislação que há sons ou ruídos que são expressamente proibidos independentemente da quantidade de decibéis que são capazes de propalar.
Interpretando-se sistemicamente o art. 3º, V e VIII, este inciso, acrescentado pela Lei nº 3827/2002, da referida lei estadual, os sons produzidos em vias públicas são proibidos independentemente da sua medição, tendo o legislador se preocupado com isso de forma expressa em alguns casos.
No entanto, o caso em exemplo se refere ao ato de buzinar, conforme apregoa-se o art. 3º, III do referido diploma estadual, in verbis:
III – produzidos por buzinas, ou por pregões, anúncios ou propaganda, à viva voz, na via pública, em local considerado pela autoridade competente como “zona de silêncio”; (grifo nosso)
Ainda que seja local definido pela legislação municipal como “zona de silêncio”, partindo-se da premissa do princípio da intervenção mínima, postulado da fragmentariedade do direito penal, me parece estar a matéria totalmente regulamentada pela lei 9.503/97, quando pune-se o ato com uma sanção de natureza administrativa.
Analisando-se o art. 41, que está no capítulo das normas gerais de circulação veicular e postura do condutor:
Art. 41. O condutor de veículo só poderá fazer uso de buzina, desde que em toque breve, nas seguintes situações:
I – para fazer as advertências necessárias a fim de evitar acidentes;
II – fora das áreas urbanas, quando for conveniente advertir a um condutor que se tem o propósito de ultrapassá-lo.
Posteriormente o artigo 227, ipsis literis:
Art. 227. Usar buzina:
I – em situação que não a de simples toque breve como advertência ao pedestre ou a condutores de outros veículos;
II – prolongada e sucessivamente a qualquer pretexto;
III – entre as vinte e duas e as seis horas;
IV – em locais e horários proibidos pela sinalização;
V – em desacordo com os padrões e freqüências estabelecidas pelo CONTRAN:
Infração – leve;
Penalidade – multa.
Como se vê, o art. 227, IV da lei 9.503/97 depende de regulamentação do CONTRAN, e neste diapasão, nos deparamos com duas resoluções que regulamentam o som e, especialmente, a buzina.
Analisando os dois atos normativos verifica-se que a Res. 204/06 se refere especificamente de sons em geral e a Res. 35/98 especificamente de buzina, conforme se extrai dos respectivos arts. 2º (res. 204) e arts. 1º e 2º (res. 35)
Art. 2º. Excetuam-se do disposto no artigo 1º desta Resolução (204/06), os ruídos produzidos por:
I. buzinas, alarmes, sinalizadores de marcha-à-ré, sirenes, pelo motor e demais componentes obrigatórios do próprio veículo;
II. Veículos prestadores de serviço com emissão sonora de publicidade, divulgação, entretenimento e comunicação, desde que estejam portando autorização emitida pelo órgão ou entidade local competente.
III. Veículos de competição e os de entretenimento público, somente nos locais de competição ou de apresentação devidamente estabelecidos e permitidos pelas autoridades competentes. (grifos nossos).
Verifica-se que a Res. 204/06 mantém as regras contidas na Res. 35/98:
Art. 1º Todos os veículos automotores, nacionais ou importados, produzidos a partir de 01/01/1999, deverão obedecer, nas vias urbanas, o nível máximo permissível de pressão sonora emitida por buzina ou equipamento similar, de 104 decibéis – dB(A), conforme determinado no Anexo.
Art. 2º Todos os veículos automotores, nacionais ou importados, produzidos a partir de 1º de janeiro de 2002, deverão obedecer o nível mínimo permissível de pressão sonora emitida por buzina ou equipamento similar, de 93 decibéis – dB(A), conforme determinado no Anexo.
O objetivo destas normas, que se fundamentam, inclusive, em normas do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), ou seja, em regras de condutas que tutelam o bem jurídico ambiental, é a preocupação de proteger a pessoa da poluição sonora. A toda evidência, denota que o ordenamento optou por tutelar tanto a segurança viária quanto o meio ambiente, quando destinou a uma camada própria em nível criminal as condutas que violem a saúde do homem, conforme predispõe o art. 54 da lei 9.605/98.
A função democrática do direito penal, após a constituição de 1988 é de aplicabilidade imediata e dever do operador da justiça (Delegado, Promotor e Magistrado).
Isto significa dizer, quer o objetivo do exegeta não é enxergar esse emaranhado de leis em seus aspectos quantitativos, que redundaria em dizer que o bem jurídico segurança viária e ambiental possuiriam um emaranhado de leis que aplicar-se-iam simultaneamente. Não!
No Direito Penal este balaio de leis atende ao postulado de que a fragmentariedade recomenda ter sido, neste quesito, da utilização da buzina de forma abusiva, uma regra de conduta inteiramente regulamentada pelo Direito Administrativo, com normas e sanções para violações dos bens jurídicos segurança viária e ambiental em patamar que encontre guarida e solução na lei 9.503/97 e as resoluções do CONTRAN.
Diante do exposto, a conduta de buzinar fora dos padrões exigidos pelas normas administrativas sub exame é um lícito administrativo, não se aplicando o art. 42, III da LCP.
Até poderia se tornar um ilícito penal, quando o som viola a saúde do homem, conforme art. 54 da lei 9.605/98, que por sua vez deverá ser constatado por perícia técnica, diante dos vestígios produzidos, já que estamos no âmbito do dano à saúde humana, o que deve configurar o ilícito ambiental um crime material. Na prática, quase impossível uma situação flagrancial nestas proporções.
Ou seja, na prática se torna um delito de difícil constatação, pois os órgãos de segurança pública não investem em equipamentos e raramente uma delegacia de polícia ou outro órgão de segurança estará equipado para medir a capacidade de emissão de ruído de uma buzina e associar essa emissão a um dano a saúde humana, dificultando o nexo de causalidade entre o dano a saúde e o instrumento causador do dano.
Juntamente com o decibelímetro deveria haver uma perícia de constatação com um médico legisla, com uma devida reconstituição da cena do crime para aferir se da distância da emissão do som até o receptor poderá ter havido o dano à saúde ou um biólogo para saber se poderia o som (estamos falando de buzina) causar “mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”, conforme a parte final do art. 54 da lei 9605/98.
Percebe-se claramente que não é razoável que sejam ignoradas as normas acima citadas, pelas quais, definem parâmetros técnicos de condutas que nos permita respaldar se no caso concreto o suposto autor do fato teria violado a paz pública ou o meio ambiente.
Tentar fazer incidir o direito penal em espécie, sem considerar os parâmetros definidos pelo órgão administrativo é um retrocesso que nos remonta à época da inquisição, como uma máquina de criminalizar, bem como restabelece um direito penal do autor.
Não é esse o papel atual do sistema processual de um Estado Democrático e Social de Direito, que a pretexto de ser em ambas as hipóteses ilícitos de menor potencial ofensivo devam as pessoas terem seus destinos definidos pela criminalização secundária, ao argumento que o Estado não esteja amparado para fiscalizar as questões de ordem administrativa.
O Estado não pode piorar o status social da pessoa humana por precariedades de seus aparelhos, que também são de sua própria (ir)responsabilidade. É o ônus da democracia. Pensemos nós em quem votamos.