Artigos

Cabe legítima defesa “preventiva” em violência familiar sistêmica?


Por Rafhaella Cardoso


Das diversas formas de violência familiar, que faz parte do infeliz cenário de considerável parcela dos brasileiros (ver nota 1), a violência doméstica de gênero ocorre de forma habitual e reiterada, fruto do histórico costume de inferiorização da mulher não só na família, mas na sociedade, desdobrando-se em vários tipos de violência: física, psicológica, moral, sexual, patrimonial etc. Diante da complexidade que envolve este contexto, a doutrina vem utilizando, para designar estas situações, o termo chamado de “violência sistêmica”. Por se tratar de uma situação em que, muitas vezes, a mulher não consegue ter reação no momento da agressão, só vindo a ter depois, num momento de “descanso” ou “descuido” do agressor, caberia alegação de legítima defesa “preventiva” ou “antecipada” em favor da mulher vítima de agressões intermitentes e contínuas?

Antes de proceder ao desnudar do conceito de “legítima defesa antecipada”, cabe, prima facie, definir o que seja violência de gênero, aproveitando-se da lição geral definida por Hannah Arendt(1994, p. 32-33): “‘um homem sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento de sua vontade, o que lhe dá um ‘prazer incomparável’” (ibidem, p. 33). A violência familiar de gênero foi pela primeira vez tratada, no Brasil, de forma específica, por meio da promulgação da Lei 11.340 de 2006, a conhecida “Lei Maria da Penha”, mas antes disso já previam regras de direitos humanos na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Maria Berenice Dias(s/d, p.1), todavia, bem esclarece que “a lei foi recebida da mesma forma que são tratadas as vítimas a quem protege: com desdém e desconfiança”.

É, portanto, uma conquista no âmbito da legislação brasileira, possuir uma lei específica para determinar políticas públicas e punições diferenciadas em razão deste quadro de violência. Porém, torna-se indispensável, diferenciar a “violência de gênero” com a “violência doméstica”. A primeira se dá em relação à questão da histórica cultura machista e de poder de um gênero em relação ao outro, geralmente, o gênero masculino sobre o gênero feminino. A segunda expressão é mais ampla e aborda um quesito espacial, ou seja, é qualquer forma de violência praticada no âmbito do lar, da coexistência ou de um grupo familiar privado, assim não implica em destacar só a mulher como vítima, mas qualquer um dos vulneráveis que estejam sendo subjugados dentro de seus lares. O artigo 7º da lei traz as formas de violência a serem coibidas contra a questão de gênero no ambiente familiar e esclarece suas formas de atuação, quais sejam: “I – a violência física; II – a violência psicológica; III – a violência sexual; IV – a violência patrimonial; V – a violência moral.”

No aspecto pragmático, podem ser percebidas, além dos atos de violência física (vias de fato, lesões corporais, tentativa ou “feminicídios” consumados) as práticas diárias recorrentes e mais noticiadas entre as vítimas de violência de gênero, são: coações, ameaças, intimidações, destruição de pertences ou objetos pessoais pelo(a) agressor(a), desmoralizações, exibição de armas, insultos e ofensas à honra objetiva e subjetiva, limitar o envolvimento do outro com outras pessoas, colocar a “culpa” e responsabilização pelo comportamento violento no parceiro que foi agredido, utilizar de “posições” ou “privilégios” machistas, usar ciúme ou honra como hipótese de justificação, causar violência patrimonial e econômica etc (ALVES, 2005, p.4).

Independentemente de ser violência de gênero no âmbito familiar ou em outros lugares, ocorre que, os crimes que o fenômeno empreende são geralmente praticados de forma gradativa, contínua (nos termos do artigo 71 do Código Penal Brasileiro) ou ainda, de forma habitual (aquele que se exerce diariamente, reiterada) sendo caracterizado o fenômeno de forma “sistêmica”, habitual, diária e gradativa, o que a psicoterapeuta especializada no assunto, Telma Lenzi (s/d, p. 1) explicita: “ao utilizarmos a Visão Sistêmica como fundamento teórico, o fenômeno da violência passa a ser visto na sua complexidade (causas individuais, relacionais, culturais e comunitárias). Portanto, ao incluirmos a noção da complexidade das causas, estamos dizendo “não” à simplificação e ao reducionismo”.

Ou seja, o fenômeno da violência familiar e de gênero é demasiadamente complexo, interdisciplinar e não pode ser alvo de um reducionismo por parte da doutrina. Portanto, todas as categorias do injusto precisam ser revistas em relação a este tipo de agressão, notadamente as hipóteses de justificação. Precisamente, a legítima defesa, causa de exclusão da ilicitude tratada no Código Penal Brasileiro (Dec. Lei 2848/40) no seu artigo 25, abrange situações de autodefesa do indivíduo diante de injustas agressões, verbis: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Assim, tradicionalmente, a figura da justificante foi pautada numa relação de necessidade de se garantir a conservação humana, possibilitando condições de “igualar” forças entre o agressor e o agredido, já que este deve valer-se de meios necessários para repelir a injusta agressão, mas utilizando-se com razoabilidade, “moderadamente”.

O requisito temporal é essencial na legítima defesa real, ou seja, a agressão injusta deve ser atual e/ou iminente. Afirma-se que é iminente quando está prestes a acontecer, o que significa, na visão de Bitencourt, que seria até antes da agressão atual acontecer e que não houve demora alguma para a repulsa, para não se confundir com “agressões futuras”. Isso porque, conforme maioria doutrinária, qualquer atuação após cessada a situação de perigo proveniente da agressão injusta é caracterizada como vingança, a qual não pode ser tolerada pelo Direito Penal sob o manto de justificante (BITENCOURT, 2010, p. 375). Na visão tradicional da doutrina pátria e estrangeira, não se admite, em regra, a legítima defesa de eventos agressivos futuros – a chamada “legítima defesa antecipada”. Porém, parte da doutrina, tal como para Santana Junior e Gadelha Junior, todavia, poderá sim ser justificada a legítima defesa antecipada em casos remotos, quando ficar constatado que o agredido não teria qualquer outro meio para defender-se e seja indispensável à conservação da espécie, por ser a única forma de se defender (SANTANA JUNIOR E GADELHA JUNIOR, 2006, p. 365). Ou seja, a legítima defesa preventiva, para ser justificante, o evento deve ser futuro, porém, deve ser provável, certo. A certeza decorrerá de particularidades do caso a caso, analisados sob o aspecto das provas em processo penal. Deve ter havido uma ameaça como parte do início da atuação injusta, e a iminência deve existir, ao menos, psicologicamente (DOUGLAS, 2003, p.1).

No caso da violência sistêmica de gênero, acreditamos ser possível a aplicação da legítima defesa antecipada, se, conforme a tese de Barros (2011, p. 10), quando da análise de um caso que foi levado a Júri, de uma mulher, chamada Severina, que contratou um matador para ceifar a vida do pai, que cometia contra ela inúmeros atos de violência sistêmica durante anos, com algumas condicionantes.

Devem, in casu, serem preenchidos os seguintes requisitos: a) Certeza da agressão futura; b) Ausência de proteção estatal; c) Impossibilidade de fugir da agressão; d) Impossibilidade de suportar certos riscos; e) Proceder preventivamente em casos extremos; f) Proporcionalidade na utilização dos meios necessários à reação. O evento deve ser analisado diverso das demais situações de legítima defesa, por exemplo, quando um homem agride outro injustamente. No caso em comento, trata-se de uma nuance sistêmica, ou seja, há vários aspectos, como por exemplo: 1) a mulher sofre temor reverencial ante ao marido ou companheiro e filhos pois muitas vezes ela sofre do fenômeno chamado “Síndrome de Estocolmo”, que a faz, no momento da injusta agressão, não perceber a gravidade da lesão em razão do afeto pelo agressor; 2) o medo de procurar as autoridades e não ser suficientemente protegida, a chamada “vitimização secundária”, e pior, intensificar as crises com o agressor ou ainda; 3) por questões de violência patrimonial, que a agredida pode vir a sofrer após a denunciação às autoridades etc”.

Ainda que não se considere a violência sistêmica uma situação a justificar a legítima defesa, nos moldes acima relatados, diante de suas particularidades, cabe, no mínimo, aceitar que, se a violência é contínua ou habitual e, a mulher, no momento da injusta agressão, não tem os meios hábeis a repelir a agressão, mas os consegue logo depois, quando o agressor se distrai, justifica, no mínimo, uma inexigibilidade de conduta diversa, que é causa exculpante da conduta, obviamente, percebendo-se, nos termos das regras da culpabilidade, uma total invencibilidade de outra reação por parte da mulher subjugada no quadro sempre frequente nos anuários de violência doméstica. 


NOTAS

[1] Apesar de ser um crime e grave violação de direitos humanos, a violência contra as mulheres segue vitimando milhares de brasileiras reiteradamente: 38,72% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente; para 33,86%, a agressão é semanal. Esses dados foram divulgados no Balanço dos atendimentos realizados de janeiro a outubro de 2015 pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). Dos relatos de violência registrados na Central de Atendimento nos dez primeiros meses de 2015, 85,85% corresponderam a situações de violência doméstica e familiar contra as mulheres. Em 67,36% dos relatos, as violências foram cometidas por homens com quem as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo: companheiros, cônjuges, namorados ou amantes, ex-companheiros, ex-cônjuges, ex-namorados ou ex-amantes das vítimas. Já em cerca de 27% dos casos, o agressor era um familiar, amigo, vizinho ou conhecido. Fonte: COMPROMISSO E ATITUDE. Dados nacionais sobre violência contra as mulheres. Disponível aqui 


REFERÊNCIAS

ALVES, Cláudia. Violência Doméstica. Universidade de Coimbra: Disponível aqui.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

BARROS, Francisco Dirceu. Severina: Assassina ou santa? O sertão que não tem o cordel encantado. Revista Prática Jurídica. Ano X – n. 116, p.10-11, Nov/ 2011.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

DIAS, Maria Berenice. Violência Doméstica na Justiça. Disponível aqui.

DOUGLAS, William. Jurados são corajosos na aplicação de legítima defesa antecipada. ConJur. Disponível aqui.

LENZI, Telma. Visão Sistêmica da Violência. Disponível aqui.

SANTANA JUNIOR, Francisco das Chagas de; GADELHA JUNIOR, Francisco das Chagas. A legítima defesa antecipada. In: Revista Direito e Liberdade. Mossoró, v.3, n. 2, p. 351-368, set/2006. Disponível aqui.

_Colunistas-Rafhaella

Rafhaella Cardoso

Advogada (SP) e Professora

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo