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Canibalismo

Canibalismo

Gaia gerou sozinha a Urano e, juntos, mãe e filho-esposo (a antecipação de Édipo), geraram uma infinidade de entes e criaturas, Cronos dentre todos.

Cronos comia seus filhos porque o Oráculo avisou que um deles o mataria. De fato, Zeus emancipou os deuses na morte de seu pai (outro Édipo).

Hatshipsut travestida de rainha-faraó concebeu por Deus o faraó-rei do Egito. Mil e quinhentos anos depois, Maria concebeu, diretamente do Espírito Santo, Jesus Cristo Rei dos Judeus: I.N.R.I. – Iesus Nazarenus Rex Iudeorum. E a santificação do homem requer, na tradição judaico-cristã, um rito canibalístico do Corpus Christi capaz de divinizar o homem.

Foi isso que comemoramos no feriado que acaba de passar. (texto de feriado, portanto)

Comer alguém está nos registros mitológicos e religiosos. E não existe tipificação penal. O livro das penas abre no comando “matar alguém”, e nunca registrou o imperativo “comer alguém” enquanto expressa recomendação punitiva.

É possível tipificar, conforme o caso, na qualificadora do § 2º, III do art. 121 do CP. Algum ritual ou alguma prática canibalística seria, em nossa tradição, considerada tortura ou meio cruel. Isso apenas se o evento morte fosse causado pelo canibalismo. Ao contrário se diz se há morte e em seguida ocorre o canibalismo. Ou seja: assim – morte seguida de ritual – não há tortura nem meio cruel de morte.

(O mesmo com um esquartejamento se útil “apenas” à ocultação do cadáver. Não há tortura ou meio cruel porque a vítima não foi esquartejada viva, até à morte; só haveria tortura e meio cruel se a vítima for esquartejada até à morte: esquartejamento precedente ao evento morte, portanto.)

Há na história recente uma infinidade de exemplares ritualísticos ou mesmo contratualistas de canibalismo: a combinação mediante vontade recíproca de alguém comer alguém. Lesão corporal (art. 129 caput do CP) ou lesão corporal de natureza grave (art. 129, §§ 1º e 2º do CP) ou lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º do CP). Não é homicídio.

É homicídio se a intenção é de morte.

É homicídio qualificado pela tortura ou meio cruel (art. 121, § 2º, III do CP) se a intenção é de morte e se o meio para atingir tal intenção é o canibalismo.

Porém, toda essa tipificação – sempre artificial como é o direito positivo – soçobra diante da tradição, da história, do mito. Não obstante toda a repugnância do ato canibalístico, isso estará para sempre na constituição da cultura humana.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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