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O caput do art. 33 da Lei 11.343/06 não traz exemplos de lei penal em branco

O caput do art. 33 da Lei 11.343/06 não traz exemplos de lei penal em branco

O uso de técnicas de reenvio representa um tensionamento severo para o princípio da reserva legal em matéria penal (art. 5, XXXIX CF/88). Seu uso excessivo, sem o devido cuidado, pode concretizar não só uma quebra da separação de poderes, um dos pilares do Estado de Direito, mas também a fragilização de qualquer pretensão de dar à norma penal funções de dirigibilidade normativa (ROXIN) ou fixação de expectativas sociais (JAKOBS).

Além do mais, as próprias funções preventivas da pena perdem qualquer sentido se sua ameaça incide sobre condutas cuja compreensão da matéria de proibição demanda não apenas conhecimento demasiadamente específico, mas também sujeito a uma série ampla de indeterminações, oriunda do extenso rol normativo que surge com o uso destas técnicas.

Ainda assim, dificilmente se pode hoje sustentar que o uso destas técnicas seja ilegítimo ou inconstitucional. Em primeiro lugar, porque sua utilização não é privilégio de um ou dois ordenamentos jurídicos. Pelo contrário, se faz presente em quase todo arcabouço legislativo penal ocidental.

Mesmo no espaço normativo penal internacional as técnicas de reenvio se fazem presentes, como se pode perceber pela confecção de normas de direito interno, por países da União Europeia, que apenas referenciam a norma comunitária, contendo esta última os elementos descritivos ou normativos relacionados à conduta punível (MACHADO, 2004:63).

Em segundo lugar, as técnicas de reenvio são sacadas, ao menos em algumas de suas aplicações, como resposta ao desenvolvimento de determinadas formas de relação social que não comportam um regramento estático, exigindo certo dinamismo no que diz respeito à forma como alguns elementos do fato punível serão delineados.  O direito penal econômico é repleto de exemplos nesse sentido.

Não sendo possível, portanto, simplesmente afirmar pela inconstitucionalidade de leis penais com elementos em branco, sob pena de se produzir uma doutrina crítica de pouquíssima relevância prática, o mais apropriado parece ser debruçar-se sobre os limites razoáveis para sua aplicação e sobre a correta forma de manejo dos desdobramentos de sua utilização no direito penal, como o tratamento do erro, as regras de imputação, o dever instrumental de informação, e assim por diante.

Para tanto, será necessário primeiramente limpar o terreno, ou seja, delimitar as técnicas de reenvio de acordo com suas características. Somente após isso será possível a construção de uma doutrina crítica sobre sua aplicação. Disto emerge a obrigatoriedade de um estudo aprofundado sobre os elementos normativos do tipo, aqueles que se submetem, regra geral, a utilização das técnicas de reenvio.

O propósito da coluna desta semana é apenas demonstrar um exemplo em que a imperfeita compreensão sobre os elementos normativos do tipo pode levar a conclusões imprecisas sobre o elemento em branco da lei penal e sobre as técnicas de reenvio utilizadas para sua complementação.

Longe de operar um equívoco de efeitos meramente teóricos, de interesse classificatório, esta confusão enfraquece a crítica que se poderia fazer às formas de complementação (reenvio) que, aí sim, tendem a ferir o princípio da reserva legal. Por não fazer esta diferenciação acabam legitimando, indiretamente, toda forma de acessoriedade em matéria penal[1]. Resumindo: é preciso separar o joio do trigo.

Para este espaço se pretende fazer isso utilizando um tipo penal costumeiramente referenciado para exemplificar a lei penal em branco. O objetivo será questionar se estamos realmente confrontados com um tipo penal desta espécie. Trata-se do caput do art. 33 da lei 11.343/06.

É comum encontrarmos a afirmação de que este artigo, ao fazer referência ao elemento “droga”, sem definir o conteúdo semântico que lhe cabe, utiliza-se de uma técnica de reenvio que permite a afirmação de que se trata de uma lei penal em branco.

A grande questão é saber se a leitura do referido artigo permite uma compreensão mínima do sentido da proibição, ou se nem mesmo isso é possível, sendo necessário o conhecimento da norma complementar para que se possa assimilar aquilo que a lei penal quer coibir, ou ainda, aquilo que ela determina como conduta punível. Se assim for, teremos lei penal em branco.

Caso contrário, se for possível essa assimilação a parir do conteúdo da lei penal em análise, sendo necessário apenas uma outra norma auxiliar para que se possa compreender detalhes acerca do limite da proibição, ou do conteúdo fático sobre qual a proibição se insere, estaremos diante de um elemento normativo do tipo penal, que por sua natureza demanda o conhecimento da norma que esclarece seus elementos conceituais.

No caso em análise, parece mais correta a conclusão de que estamos diante do primeiro caso. Regra geral, da leitura do art. 33 da Lei 11.343/06 é possível deduzir uma proibição clara para uma série de comportamentos, sendo necessário, porém, a consulta a um outro corpo normativo para que se chegue a precisa definição conceitual de um dos termos utilizados pelo legislador penal, a saber, o termo “droga”.

A consulta à portaria da Anvisa, que estabelece o rol de substâncias proibidas, permite a completa noção daquilo que é antijurídico, mas não determina em si o conteúdo do dever de ação ou omissão para que se concretize a ilicitude desta conduta.

Para melhor compreensão da conclusão apontada, serão analisados mais dois tipos penais, afim de serem contrapostos ao excerto normativo já analisado.

O primeiro deles será o que descreve o delito de furto. O conhecimento de que uma coisa móvel é “alheia” pode ser obtido com base na lei civil que estabelece a titularidade da propriedade. Porém, em muitos casos é razoável concluir que esse conhecimento é dispensável.

Mesmo uma criança pode, na maioria das situações, a partir de certa idade, compreender a noção de que algumas coisas não lhe “pertencem”, ou seja, lhe são “alheias”.

Assim, embora o termo “alheia”, no tipo de furto, possa ser mencionado como exemplo de elemento normativo, é cediço que se trata de um elemento cuja compreensão social é razoavelmente consensual, não sendo necessária a complementariedade, característica das técnicas de reenvio já abordadas, para compreensão do dever (proibitivo) juridicamente estabelecido.

Num outro extremo, tem-se o art. 269 do Código Penal pátrio. Neste caso, o conhecimento acerca das doenças que demandam, por parte do médico, notificação compulsória, exigem a consulta a um instrumento normativo diverso.

Mais do que isso, nesse caso, diferente do que se observou na análise do art. 33 da Lei 11.343/06, o núcleo do dever encontra-se neste ato normativo complementar, de modo que a lei penal serve apenas como dispositivo sancionatório adicional.

A compulsoriedade de notificação já é estabelecida na normativa oriunda do Ministério da Saúde, pelo que a omissão em realizar tal notificação já resulta, por si só, numa conduta ilícita (antijurídica, antinormativa, contrária ao direito).

O que a lei penal faz é impor, sobre àquela desobediência, a sua peculiar ameaça. Neste caso, temos que o art. 269 do CP é um exemplo claro de lei penal em branco, uma vez que a matéria de proibição necessita da complementação para configuração do sentido da ilicitude da conduta, ou do dever sobre o qual se efetua este juízo.

Frederico Horta elucida a diferença que se procurou demonstrar:

os elementos em branco se distinguem entre os demais elementos normativos das leis por se referirem precisamente a deveres, decorrentes de mandados ou proibições extrapenais, cuja inobservância compõe o injusto penal e cujo conteúdo confere sentido ao tipo correspondente. (HORTA, 2016:115)

Será nesses casos que a doutrina deverá atuar de forma mais crítica e incisiva, uma vez que, nessas situações, o legislador penal lança mão da sanção sem o cuidado em criar um tipo com referência a um elemento material de ilicitude próprio.

Isso significa que toda a discussão acerca da dignidade penal da proibição (proteção) poderá ser preterida, dando vazão a criação de tipos penais desconectados das necessárias amarras ao debate democrático acerca de sua ingerência[2].

Chega-se perigosamente perto de um direito penal que criminaliza a mera desobediência, típico de estruturas estatais autoritárias, não limitadas por um regramento constitucional democrático.


REFERÊNCIAS

HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial Pons, 2016.

GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 49/2004, pp. 89-147, jul-ago/2004.

GUARANI, Fábio. Intensificação do uso de técnicas de reenvio em direto penal: motivo político-criminais. Revista Jurídica Cesumar – Metrado, v. 12, n.. 1. pp. 35-47, jan-jun, 2012.

MACHADO, Maíra Rocha. Internacionalização do direito penal: a gestão de problemas internacionais por meio do crime e da pena. São Paulo: Editora 34, 2004.


NOTAS

[1] Análise semelhante é feita pelos autores que se debruçam sobre bens jurídicos coletivos. Ao perceberem a necessidade de diferenciar verdadeiros bens jurídicos coletivos dos falsamente classificados como tais, estes autores conseguiram, a nosso ver, “clarear o terreno” para uma construção dogmática de melhor rendimento em matéria de crimes de perigo abstrato. (Por muitos, ver: GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 49/2004, pp. 89-147, jul-ago/2004). De igual maneira, tratando aqui de um tema ligeiramente diferente, a diferenciação proposta tem por objetivo permitir uma crítica mais eficaz sobre a lei penal em branco e os limites para acessoriedade em matéria de política-criminal.

[2] Tendência conhecida como “administrativização do direito penal”. Segundo GUARANI esta pode ser definida como “a utilização do direito penal, pelo Estado, para garantir o bom andamento de suas próprias atividades enquanto instância executiva, provedora de administração pública e gerenciadora de inúmeros âmbitos sociais” (GUARANI, 2012:35)

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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